A diversidade cultural que se estende pelos territórios da América Latina é base privilegiada da pesquisa de seus artistas. Seja pelo uso de matérias-primas, seja pela apropriação de procedimentos artesanais, seja pela elaboração de narrativas não hegemônicas ou pela subversão do “bom gosto”, o trabalho criativo do povo brasileiro e latino-americano ganha leituras plurais pela arte contemporânea.
TRAMAS
Da renda de bilro ao crochê e ao tricô, passando pelos pontos de bordado, o Brasil é reconhecido pela produção artesanal de tramas complexas e delicadas. Elas povoam a memória afetiva de todo bom brasileiro, do Oiapoque ao Chuí. Guardando diversidade e particularidades das regiões onde surgem, conferem sensação intimista a obras que tensionam noções identitárias e territoriais.
Vivian Caccuri, Jardim (série Pagode), 2014
Tem coisa mais popular que as redes de segurança da construção civil? Feitas de fios de plástico, viraram matéria-prima de Vivian Caccuri. A paulistana descobriu o material numa performance realizada no canteiro de obras da região portuária do Rio de Janeiro, às vésperas das Olimpíadas. Com tramas de cores berrantes, cria flâmulas e murais por “tecelagem negativa”, como em Jardim (série Pagode, 2014). A técnica consiste em retirar fios intercalados, dando leveza a um elemento comum na paisagem das metrópoles.
Alexandre da Cunha, Fair Trade (em colaboração com Luisa Strina), 2011
Alexandre da Cunha criou o conceito e os desenhos e a galerista Luisa Strina executou os bordados. Por aí já se tem a ideia da profusão de conceitos embaralhados na série Fair Trade (2011). Além de tensionar os limites entre os papéis de artista visual e artesão, de artista e galerista, de autor e colaborador, o carioca também jogou com o feminino e o masculino, o doméstico e o industrial.

MADEIRA
Com aplicação tradicional no universo da escultura popular, a madeira empresta suas tonalidades a objetos utilitários, decorativos e místicos. A arte apropria-se da organicidade do corpo das árvores e de seu simbolismo anímico, quando convertida em artefato. Nessa transmutação projeta-se como elo que refaz a comunhão entre homem e natureza.
Cristiano Lenhardt, Pau Bonito, 2015
Lança de caboclo é a arma usada por essa entidade da umbanda. Pau-de-fita, uma dança trazida ao Brasil pelos portugueses, com um mastro no centro, do qual saem fitas que os dançarinos seguram pelas pontas. Estandarte é uma bandeira com uma haste no meio, pela qual é levada em procissões, batalhões e na folia do Recife. Mescladas, todas essas referências viram Pau Bonito (2015), série de esculturas de Cristiano Lenhardt que ganham roupagem colorida, flertando com o concretismo.

Ana Mazzei, Ghost Bricks, 2015
Roubando da carpintaria o procedimento de fabricação das estruturas individuais que formam a instalação Ghost Bricks (2015), Ana Mazzei cria uma maquete fictícia. Esse cenário abstrato parece se converter em um quebra-cabeça construtivo, cujas peças não se encaixam. A reencenação de narrativas possíveis dentro do contexto da razão humana, que está no cerne desse trabalho, é também o fio condutor da trajetória artística da jovem paulistana.

Efraim Almeida, Mãos com Cabeça, 2007
A inspiração nas esculturas artesanais é clara, e nem poderia ser diferente para Efrain Almeida. Nascido no município de Boa Viagem (Ceará), o artista incorporou técnicas locais para criar um universo intimista, que remete ao autorretrato e à biografia. É o caso de Mãos com Cabeça (2007), em que reproduz a própria face numa composição que alude aos ex-votos pela representação fragmentada do corpo. O artista tem atualmente exposição no MAM-Bahia até 3/7.

OLARIA
Se Deus esculpiu o homem usando barro, nada mais natural que a criatura siga os passos do criador. Buscando na terra a matéria-prima na qual imprimem suas marcas, artistas mostram a evolução da cultura humana em trabalhos de diferentes orientações. Primeiro, há a emulação das formas primitivas, como em artefatos arqueológicos. O domínio da técnica é a etapa seguinte, com a utilização do barro vermelho em moldes. Finalmente, a subversão do procedimento de edificação joga luz em seus aspectos sociais e políticos.
Héctor Zamora, Inconstância Material, 2012
Feito inicialmente em olarias por meio de processo artesanal, o tijolo é um indicador da hierarquia dos meios de produção. Passando das formas para as mãos de trabalhadores que levantam paredes anonimamente, a peça sedimenta os muros da baixa valoração do trabalho braçal. Com a transposição do canteiro de obras para o cubo branco, o mexicano Héctor Zamora faz de Inconstância Material (2012) um ajuste de contas: no fluxo dos tijolos atirados pelo ar, a atividade dos operários tem sua performance ressaltada.

Nazareno, Um Começo (Simples Assim), 2014
Uma das características notáveis das obras tridimensionais de Nazareno é a criação de um laço quase familiar com o público. Pela miniaturização dos objetos cotidianos, o artista paulistano transporta o espectador de volta à infância, colocando em cena a instabilidade do sujeito diante da cristalização de convenções. Em Um Começo (Simples Assim, 2014), tijolos mínimos sugerem o contorno de uma parede, que, como um castelo de cartas, parece pronta a ruir.

Tonico Lemos Auad, Sem Título – Casa Tramada/Casa Maciça, 2012
Do que é feita uma casa? De tijolos, claro. Tonico Lemos Auad tirou partido da obviedade da constatação para sintetizá-la nas esculturas de Casa Tramada/Casa Maciça (2012). Nelas, a massa de terra cozida é convertida em pequenas casas apoiadas sobre pedestais de madeira nua. Duas são maciças e as outras são moldadas numa trama que lembra outro elemento comum do artesanato, o vime. É o encontro da manufatura e do minimalismo.

ESTÉTICA DA GAMBIARRA
Quem nunca ouviu falar do jeitinho nacional que atire a primeira pedra. Se todo brasileiro está sempre se virando para driblar as precariedades não resolvidas pelo poder público, com a arte não seria diferente. Sua permeabilidade absorveu essas estratégias, conhecidas pelo nome genérico de gambiarra. Por ela, a assemblage e a escultura ganharam novos contornos, extraindo beleza de aglutinações e remendos que, em percepções mais conservadoras, seriam considerados mal-acabados. Não resta dúvida: a gambiarra tem estética própria.
Paulo Nenflídio, Worker Crab, 2013
Se Chico Science inventou o manguebeat com a união do maracatu e da música eletrônica, Paulo Neflídio criou o caranguejo que frequenta esse manguezal. A série Worker Crab (2013) é formada por esculturas de lata desses animais, equipadas com baterias solares que movem pequenos motores para produzir ruído e tremor. O som e as invenções eletroeletrônicas dão a tônica do trabalho do artista nascido em São Bernardo do Campo.

Ernesto Oroza, Provisional Bench – Aventura, 2007
Raízes de árvores sustentam tábuas que viram bancos. Caixas plásticas para transportar frutas em mercados ganham motor e se convertem em rádios. Esses são os frutos da gambiarra declarada do cubano Ernesto Oroza, que mostra que a sanha consumista de hoje não tem nada a ver com necessidade. Afinal, para que cadeiras de designers consagrados, se é possível usar estruturas de metal jogadas no lixo? Basta construir sobre elas um assento de madeira. É o caso de Provisional Bench – Aventura (2007), que o artista fez já morando na cidade homônima, na Flórida.

Barrão, Minueto, 2015
O artista carioca Barrão é um expert na aglutinação aparentemente desordenada de cacos de adornos de porcelana. Daí surgem híbridos divertidos, que mesclam um ar de “casa da avó” ao nonsense que se esgueira pela produção humana e suas narrativas. Em 2015, ele passou a investir em um novo processo, usando pasta-base de porcelana para criar esculturas sobre as quais aplica peças industrializadas. Um exemplo da nova fase é Minueto (2015), em cartaz na Galeria Fortes Vilaça.

CULTURA DE MASSA
A visualidade exacerbada do povo não tem controle. Vai dos almanaques de histórias populares ao cordel. Do figurino berrante das estrelas do tecnobrega à estampa Pucci, deglutida por Beatriz Milhazes em sua síntese barroco-pop do Brasil. Do design gráfico às propagandas. Não importa a que santo reze, a cultura de massa atravessa os muitos estratos sociais para chegar à arte – reinventada, sequestrada e convertida em produto crítico.
Paulo Nimer Pjota, Síria, 2015
Os despojos de populações à margem da cultura hegemônica eurocêntrica são a matéria-prima dos trabalhos do paulista Paulo Nimer Pjota. Partindo de restos de construções como suporte, o artista aplica sobre a superfície elementos da cultura de massa. Assim, cria assemblages bidimensionais como Síria (2015), em que personagens infantis e ícones regionais, afixados em uma chapa de alumínio, fazem lembrar cenários desolados das periferias do Oriente Médio, não muito diferentes do Brasil.

Christian Vinck, Vida y Hazañas de J.M., 2014
O venezuelano Christian Vinck opera na tensão entre a latinidade e os padrões europeu e norte-americano do mundo globalizado. Para isso, resgata em pinturas cenas cotidianas da América Latina, reinventa mapas ou retrata capas de livros de história. Em Vida y Hazañas de Joaquín Murrieta (2014), Vinck tira do baú um Robin Hood mexicano. Murrieta (1829-1853) teria se tornado chefe de um bando criminoso após ser discriminado como imigrante e ter sua mulher violentada e assassinada durante a Corrida do Ouro na Califórnia.

Rafael RG e Fabiana Faleiros, Tour Bogotá, 2012
Para Fabiana Faleiros, a subversão do “bom gosto” é disparadora de novas formas de existência. Em 2012, ela e Rafael RG incendiaram Bogotá (Colômbia) com intervenções e shows performáticos, mesclando funk carioca com cumbia. Uma oficina de caipirinha deu teor alcoólico à viagem, que terminou com a exposição Libertad a la Orden, atualização relax do lema da bandeira colombiana, Libertad y Orden. Aqui está o flyer do projeto.
