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Coração de Banana, de Walmor Corrêa [Foto: Divulgação]
Postado em 30/01/2023 - 3:01
A soma de todas as coisas
Walmor Corrêa dá novos contornos ao desenho científico por meio de uma engenharia genética irracional

O artista Walmor Corrêa ganha uma retrospectiva na cidade onde nasceu, Florianópolis, no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), oportunidade para conhecer sua produção com mais amplitude. A curadoria da exposição Sobre Pássaros, Sinapses e Ervas Energéticas, assinada por Paulo Miyada, põe o foco em uma poética provocadora que dificulta enquadramentos imediatos, por meio de um conjunto de pinturas, objetos, impressões, taxidermias e instalações. Feitas entre 2000 e 2022, as obras selecionadas possibilitam dimensionar a complexidade de uma criação transdisciplinar que abarca história natural, arqueologia, biologia, botânica e paleontologia.

Nos mundos possíveis inventariados pelo artista, misturam-se o vegetal e o animal numa arquitetura de ciladas sem-fim. Como alerta Miyada, “nada é tão simples assim” diante de algo que estabelece uma desordem no imaginário e obriga o espectador, quase como um detetive, a seguir pistas, armadilhas, enigmas. Nesta reunião inédita, é possível observar obras icônicas desse artista viajante do século 21, um obsessivo pesquisador de mapeamentos naturalistas, mensurações técnicas, precisões anatômicas, desenhos de absoluta exatidão, catalogações de insetos e animais imaginados em sua morfologia, anatomia e nomenclatura.

Unheimlich (2005), As Dores das Mulheres Latino-Americanas (2008), Biblioteca dos Enganos (2009), Sítio Arqueológico (2012), Diorama MAM (2015), Diorama Preto (2012), Mapeamento Cognitivo (2008-2022), Deslocamentos (2014) e Etnografia Cultural da Flora Mágica Brasileira (2019-2022) são alguns dos trabalhos que compõem o recorte curatorial.

"NOS MUNDOS POSSÍVEIS INVENTARIADOS PELO ARTISTA, MISTURAM-SE O VEGETAL E O ANIMAL NUMA ARQUITETURA DE CILADAS SEM-FIM"

ARAPUCAS
Chamam atenção as múltiplas abordagens – um feixe de relações entre o real e o irreal, o sublime e o pitoresco, arte e memória, o possível e o impossível, arte e ciência. Com base em estudos minuciosos que, às vezes, envolvem a tradição oral, mitos e lendas, Walmor Corrêa mapeia a fauna, a flora, a geologia e a geografia. Na composição de seres improváveis, híbridos de humanos com outros animais, cria um universo ficcional ancorado na linguagem dos desenhos científicos e explicações escritas à mão sobre a origem, o funcionamento e os hábitos de peixes metamorfoseados com pinguins, ratos com urubus, besouros e veados, gatos e pacas, gaivotas com garras, aranhas vertebradas, anfíbios com bico. Aos poucos, percebem-se os elementos chocantes do absurdo e do ilógico, o desatino e a ausência de saídas em um mundo impactado pela experiência da escassez de humanidade.

Em Unheimlich, o artista descreve as funções internas de seres como a sereia Ondina, mapeando o órgão reprodutivo e o sistema respiratório desse ser que habita o mar profundo. Fruto de uma residência artística em 2014, em Washington (EUA), Deslocamentos é exibido em uma sala especial dedicada às descobertas em torno do ornitólogo William Belton (1914-2009) e da Sporophila beltoni, espécie de ave brasileira encontrada no Museu de História Natural de Washington. Na Biblioteca dos Enganos, obra composta de mobiliário, 25 livros e uma escada, ele investiga as anotações do cientista alemão Hermann von Ihering (1850-1930) sobre animais observados no Brasil. Os desenhos do artista registram os equívocos do pesquisador.

Etnografia Cultural da Flora Mágica Brasileira (2019-2022), uma grande parede com impressões fine art, propõe olhar as plantas como energéticas, alucinógenas e afrodisíacas. De fina ironia, sarcástico às vezes, traz beleza e erotismo em dicas para inúmeras necessidades e aflições com representações de espécies de plantas de imediata identificação popular, tão precisas quanto as registradas pelas expedições científicas, em compêndios de medicina, nos atlas de anatomia ou vistas em gabinetes de curiosidades. O preciosismo técnico confunde e quase neutraliza a descoberta dos ardis. Mas também sinaliza desigualdades.

O encontro de mundos de Walmor Corrêa no Masc contribui para reconhecer duas mulheres negras do solo ilhéu, nas pinturas Antonieta de Barros (2022) e Retrato Gorete (2021), que integram a obra Mapeamento Cognitivo. Antonieta (1901-1954) é a primeira deputada negra do Brasil, e Maria Gorete Mendes mora, vive e perambula no bairro Carianos, na região do aeroporto. Ela também figura em Para Onde Vai Gorete? (2020), exposta em parede especial com um breve perfil da moradora. Fora da história oficial da cidade, é curioso 147 o fato de ela ser alçada à condição de ícone de um espaço da elite. No entre fios da memória de Florianópolis, retirada da invisibilidade, Gorete aparece agora como comandante de aviação, de uniforme e quepe.

A grandeza de uma exposição quase sempre está naquilo que não aparenta, mas sinaliza. Ao dar novos contornos ao desenho científico com uma engenharia genética irracional, Corrêa mexe com o poder da isenção científica, derruba jargões classificatórios, desconstrói o imaginário e a prática eurocêntrica dos artistas viajantes definidores de verdades até então incontestáveis. Na síntese e limpidez, na “soma de todas as coisas”, a mostra revela o quanto, no tempo de “muitas verdades, falsas verdades”, o artista aproxima arte e política.

Serviço
Sobre Pássaros, Sinapses e Ervas Energéticas
Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis
Encerrada

Diorama Preto (2012), de Walmor Corrêa [Foto: Álvaro Dominguez]
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walmor corrêa