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Postado em 29/09/2011 - 7:15
Além da imaginação
Nina Gazire

Conheça cinco casos de processos bizarros por quebra de direitos autorais

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Até onde vai o direito de proteger a autoria e a divulgação de uma obra, seja ela de alta voltagem intelectual, vinda da cultura de massa ou subproduto da fama volátil das celebridades? Em que medida esses direitos podem ser dos seus legítimos herdeiros ou de pessoas acostumadas a criar dificuldades para vender facilidades? A fruição cultural deve sobrepor-se ou submeter-se ao direito patrimonial? Do ponto de vista jurídico e cultural, esta é uma questão em aberto não só no Brasil, mas no mundo todo.

Alguns fatos bizarros talvez nos ajudem a refletir sobre os rumos estranhos que por vezes a defesa autoral consegue trilhar. Caminhos que se embaralham na contemporaneidade, quando o acesso e a troca de informações ganham uma abertura e uma velocidade inéditas, colocando em xeque os limites entre direito público e direito privado. Essas leis têm na origem a intenção justíssima de garantir ao autor o acesso aos lucros de sua atividade. Tudo começa a enroscar quando esses direitos expandem suas margens ao infinito ou passam do titular para seus herdeiros e, nesse caminho, perde-se o bom senso para geri-los. É quando alguém resolve autonomear-se autor de algo de domínio público, como uma tatuagem tribal.

Ou quando fãs de Batman, que sonham com um Batmóvel na garagem, batem de frente com a administradora da franquia. Conheça aqui alguns casos de direito autoral que vêm causando espanto não só no mundo jurídico, mas também na mídia. Até que ponto os cuidados de alguns donos de espólios, como os da cantora Carmem Miranda ou dos escritores Manuel Bandeira e James Joyce, podem atrapalhar a publicação de livros de memórias e de importantes pesquisas científicas ou até mesmo simples, mas honestas, refeições servidas em um bar?

Retratos em preto e branco

Manuel Bandeira

A quem pertence a foto que você tirou abraçado ao seu amigo famoso, já falecido, e guarda na gaveta ou, mesmo, tem emoldurada na sala? Essa imagem é sua ou dos herdeiros do famoso? E quando são dois os famosos e um deles quer publicar em suas memórias a foto do outro? O bom senso indica que não há problema. Mas não é essa a situação que o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Ledo Ivo, vive atualmente. Amigo do poeta Manuel Bandeira (1886-1968), Ivo resolveu publicar no seu livro de memórias O Vento do Mar (Ed.Contracapa), em breve nas livrarias, algumas fotos que fizeram juntos. Para lembrar um convívio cultivado por mais de três décadas, desde os 19 anos de idade. Aos 87, Ivo confessa ainda estar presenciando absurdos. Entre outras coisas, que parentes distantes de Bandeira têm mais direito do que ele de publicar essas fotos.

“Direito autoral no Brasil é um caos, uma maluquice. Meu advogado me aconselhou a não colocar essas fotos porque a família poderia apreender a edição do livro”, esbraveja Ivo. “Essa família aí nunca conviveu com Bandeira, são sobrinhos mais que distantes que nunca visitavam o tio. Bandeira não teve filhos e a única irmã também não. Ele deixou seus direitos autorais para uma namorada. Quando ela morreu, ficou essa confusão.” E pergunta: “Se Bandeira, em vida, não deixou direito autoral para a família, por que uma lei pode ser usada para garantir o contrário?” A pergunta fica no ar. O defensor dos direitos autorais da família Bandeira, Alexandre Teixeira, não respondeu aos telefonemas e e-mails de SeLecT.

DNA para livro de Joyce

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Conhecido por mover estranhos processos por supostas quebras de direitos autorais, o detentor do espólio do escritor irlandês James Joyce e único
herdeiro vivo, Stephen Joyce, nada fez no dia 16 de junho passado. Essa data assinala anualmente as comemorações do Bloomsday, o dia em que transcorre toda a ação do protagonista Leopold Bloom no livro Ulysses. A obra, um dos monumentos literários do século 20, motivou este ano uma homenagem inédita. Milhares de fãs publicaram no Twitter todas as frases do livro. Por incrível que pareça, o neto de Joyce não fez nada contra esses posts. Decidiu concentrar-se no ataque a John Craig Venter, cientista americano que trabalhou no Projeto Genoma e ajudou a mapear as características
do DN A humano e de várias outras espécies.

Venter, em março passado, foi impedido de concluir uma importante pesquisa genética. Desde 2008, desenvolvia o projeto de uma célula cujo genoma seria inteiramente sintético. Para isso, junto de seus colegas do J. Craig Venter Institute, decidiu dar vida a uma citação de James Joyce. Para criar esse código de DN A artificial, usaram a frase “To live, to err, to fall, to triumph, to recreate life out of life” (Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida fora da vida), presente no livro Retrato de um Artista Quando Jovem. A frase foi transformada em sequência genética, por meio de computação e da atribuição de uma letra a cada par de gens. O código, implantado em uma bactéria, passou a reproduzir outras células com essa marca literária. Mas a bela homenagem acabou em intimação oficial para suspender o projeto. O neto de Joyce move uma ação contra o cientista por quebra de direitos autorais. Há pouco tempo, ele também tentou barrar a publicação da biografia de sua mãe, Lucia Joyce. O livro só foi publicado após a biógrafa e professora universitária, Carol Schloss, pagar US$ 240 mil para ter o direito de escrever qualquer informação sobre a família Joyce.

Batmóvel oficial e oficioso

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O Batmóvel, o famoso carro do Homem-Morcego, apareceu pela primeira vez nos quadrinhos em 1941. Mas foi só em 1966 que saltou dos desenhos
para as ruas cenográficas de Gotham City, quando um modelo real foi feito especialmente para o seriado televisivo. De lá para cá, o fabuloso bólido teve muitas atualizações. Tornou-se um fetiche não só para os fãs do super-herói, mas para os colecionadores de automóveis. Esses aficionados não poupam esforços para construir seus próprios modelos. Um desses admiradores é o mecânico Mark Towle, que fez seu Batmóvel inspirado no modelo de 1966, com o intuito de comercializar outras cópias. A DC Comics, editora responsável pela franquia Batman, não gostou da brincadeira e move processo contra Towle por quebra de direitos autorais. O processo foi aberto em maio deste ano e está no tribunal do estado da Califórnia. 

Isso aconteceu porque outro Mark, o mecânico americano Mark Racop, é o único que possui a licença oficial de fabricação do Batmóvel, concedida pela DC Comics. Se o leitor for tomado pelo irresistível desejo de ter um Batmóvel, pode encorajar-se na internet. Além do veículo fabricado por Towle, é possível encontrar outros fãs que construíram versões do carrão do morcego justiceiro. A Wikipedia tem as especificações para a construção tanto do modelo de 1966 quanto da versão de 1989, feita para o filme Batman Returns, dirigido por Tim Burton. Towle montou uma empresa, a Gotham Garage e, mesmo processado, ainda vende seus modelos. Com os Bat-opcionais, eles chegam a custar até US$ 5 mil. Uma pechincha perto do que o mecânico terá de gastar com despesas de advogado. Santa confusão, diria o menino prodígio.

Tatuagem ancestral com autoria?

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O tatuador americano S. Victor Whitmill quase impediu o lançamento do filme Se Beber Não Case, Parte II, continuação de uma franquia cinematográfica milionária. O ex-pugilista Mike Tyson, que possui uma tatuagem feita por Whitmill em seu rosto, participou do primeiro filme. Na continuação, é lembrado quando um dos personagens aparece com uma tatuagem igual ao do lutador. Isso foi o suficiente para o tatuador apresentar
uma ordem judicial para impedir que o filme estreasse no dia 26 de maio. Whitmill considerou que a tatuagem usada pelo ator Ed Helms desrespeitava seus direitos autorais. 

Tyson teria concordado que Whitmill seria o proprietário dos direitos autorais dessa obra em sua pele, alegou o tatuador. Algo muito curioso, já que, segundo Whitmill, a tatuagem seria inspirada nos motivos tribais dos maori, aborígines da Nova Zelândia. Não se sabe de nenhum maori ter processado algum dos milhões de tatuadores que reproduzem esses desenhos mundo afora, há tempos.  Desta vez, pelo menos, o bom senso venceu. Talvez porque jogasse ao lado dos estúdios Warner Bros., donos do filme. O processo foi julgado um dia antes da estreia e o filme faturou US$ 86 milhões só em sua primeira semana de exibição nos Estados Unidos. Já pensaram se os maori decidissem finalmente fazer valer seus direitos? Ganhariam uma boa bolada.

O que que a baiana tem (com isso)?

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O vatapá, o caruru e o mungunzá acabaram se tornando receitas indigestas para os proprietários do Bar São Cristovão, na Vila Madalena, em São Paulo. Em 2009, para homenagear o centenário de Carmem Miranda, o restaurante resolveu montar um cardápio que oferecesse todos esses pratos, cantados pela maior celebridade musical brasileira de todos os tempos. Os familiares de Carmem resolveram processar o bar por quebra de direitos autorais e exigir uma indenização. A ação foi julgada em primeira instância em janeiro passado. A Justiça deu ganho de causa ao bar, acatando os argumentos do advogado Pedro Soutello Escobar de Andrade, que defendia o restaurante, de que não houve uso indevido do nome da artista. A família Miranda resolveu recorrer a uma segunda instância e a absurda novela jurídica continua.

Alguém já ouviu falar de alguma baiana processar Carmem Miranda por cantar para o mundo as delícias de seus quitutes? A música O Canto do Pregoneiro (South American Way) foi composta em 1939 por Al Dubin e Jimmy Mchugh, com versos em português de Aloysio De Oliveira. O gostoso cardápio baiano citado por ele é herança das comidas de santo das religiões africanas enraizadas na cultura popular. Em momento algum poderia ser da famosa intérprete. Além de usar abacaxis em exóticos arranjos na cabeça, Miranda acabou espalhando involuntariamente muitos outros pelo caminho.