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Postado em 26/08/2011 - 4:31
Ao mestre com carinho

Exposição em Porto Alegre é uma das melhores e mais abrangentes mostras de Regina Silveira.

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Atractor, 2011 instalação em vinil adesivado prata, aplicado na fachada da Fundação Iberê Camargo. Foto: Carlos Stein/divulgação FIC

Angelica de Moraes

O convite para expor na Fundação Iberê Camargo (FIC) foi recebido por Regina Silveira de modo especial. Não era mais um compromisso, dos muitos de sua agenda lotada de mostras em locais prestigiosos, de diversas latitudes do planeta. Desde logo, ao comentar o que fazia em seu ateliê, no bairro paulistano do Sumaré, notava-se emoção na voz e o brilho nos olhos. E, nítido, aquele desassossego do desafio. Expor no belo prédio criado pelo arquiteto português Álvaro Siza à beira do Rio Guaíba para celebrar o legado de Iberê Camargo, seu professor de pintura, grande amigo e incentivador, era reatar uma conversa interrompida, uma última carta que ela sempre lamentou não ter respondido a tempo.

Era ombrear-se com o mito. Algo assim como nutrir-se uma vez mais do legado do mestre, mas no mesmo patamar de excelência. A correspondência com Camargo foi frequente no período em que a artista iniciava formação no exterior (Espanha), no fim dos anos 1960. O hábito tornou-se descontínuo ao longo da vida, mas nunca cessou. Esse diálogo se restabelece desde as primeiras obras do percurso de Regina Silveira: Mil e Um Dias e Outros Enigmas. Um dos primeiros impactos da mostra ocupa a parede ao fundo do andar térreo: Desaparência. É um tradicional cavalete de pintura e o entorno de objetos de um ateliê, desenhados em perspectiva aguda e linhas tracejadas, convenção gráfica para ausência.

Em certo ponto de observação, o conjunto gráfico parece elevar-se do chão e flutuar, feito objeto tridimensional imaterial. Desaparência é evidente e bela homenagem ao pintor e mestre (1914-1994). Ausência sentida, emocionada. Mas, para quem conhece a obra de Silveira, sabe que seu mote constante é que as aparências sempre são enganosas ou, no mínimo, suporte para diversas indagações que podem transitar do filosófico ao irônico e metafórico. Nessa mesma obra e quase como uma nota ao pé da página de toda a gigantesca mostra, que ocupa três andares do edifício, a artista faz um comentário cifrado que tanto aponta sua dúvida sobre a permanência da pintura na contemporaneidade como se refere a um fato que lhe marcou a trajetória: a ruptura com as tintas e pincéis.

Se é verdade o que a teoria psicanalítica apregoa sobre a necessidade de o filho matar simbolicamente o pai para poder afirmar sua própria personalidade, Silveira cumpriu à risca sua tarefa de individuação e emancipação estética. Ao longo das últimas quatro décadas, desenvolveu e consolidou uma obra extremamente autoral tanto no panorama nacional como internacional. Nada deve ao cavalete. Mas admite dever muito à atitude autoexigente que Camargo demonstrava na profissão. Quando Silveira abandonou a pintura e adotou práticas associadas à arte desmaterializada de raiz conceitual, soube dar fôlego e consistência ao novo trajeto, fundamentando-o no entendimento expandido da gravura. Esplêndida gravadora, Silveira é
também dos raros artistas que têm pleno domínio do espaço arquitetônico em que inscreve suas obras. Sabe que precisa alterar escalas para melhor impactar os olhos de quem observa seu trabalho em um ou outro ambiente.

Foi isso que ela fez na exposição em Porto Alegre. Adaptou à escala e à configuração arquitetônica do prédio alguns de seus mais importantes trabalhos. Sem dúvida alguma, e apesar de existir há três anos, o prédio de Álvaro Siza nunca foi ocupado por uma exposição que entendesse tão completamente o programa estabelecido pelo seu autor para o uso do espaço. Um dos aspectos mais fascinantes dessa mostra é poder olhar o conjunto de obras de uma única mirada, do vão central para onde converge a visibilidade ampla de todas as salas expositivas, em seus diversos níveis.

Essa visão concentrada e simultânea a várias séries de trabalhos e vários tempos – realizadas pela artista desde os anos 1980 até a atualidade – confere uma característica inédita à exposição. Além de reunir o maior e mais coeso conjunto de obras de Silveira já exibido no Brasil, ela propõe e incentiva leituras cruzadas, mutuamente fertilizadoras de metáforas. Ajuda o público a penetrar melhor no complexo e fascinante universo simbólico dessa grande artista. A curadoria é do crítico José Roca, mesmo curador da próxima edição da Bienal do Mercosul (setembro a novembro deste ano, em Porto Alegre).

Mas todos os que já fizeram curadorias de exposições de Regina Silveira (como esta escriba que vos tecla) sabem que a tarefa é compartilhada em todos os detalhes com a artista. Que detém a concepção geral da mostra, mas dialoga sobre o elenco de obras e o modo de reuni-las. Que ninguém se iluda: Regina Silveira é a melhor curadora de Regina Silveira, sempre. E nenhum curador acharia essa parceria desvantajosa porque aprende muito no processo, até a entender melhor o espaço onde realiza a curadoria.

Regina Silveira: Mil e Um Dias e Outros Enigmas
Fundação Iberê Camargo
Av. Padre Cacique, 2.000
Porto Alegre, RS
Até 29 de maio

www.iberecamargo.org.br