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Postado em 19/05/2015 - 5:51
(ao meu amor maior e lindo) (axé)
Bernardo Mosqueira

No próximo dia 23 de maio Afonso Tostes abre individual na Galeria Luciana Caravello, junto com o lançamento da edição #23 da seLecT no Rio de Janeiro

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Legenda: Sem Título (2015), obra da exposição Para as Amarras, em que Tostes se refere à Telemaquia (foto: Cortesia Luciana Caravello Arte Contemporânea)

Em 2013, Afonso Tostes convidou-me para fazer a curadoria de sua exposição individual na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro. No início do processo de desenvolvimento da mostra, fomos até a Fazenda Bom Retiro, na cidade de Chapéu Duvas, no interior de Minas Gerais, para encontrar as peças de madeira que um dia formaram a estrutura de um paiol que fora utilizado para armazenar as colheitas de milho da região. Estando todas as peças surpreendentemente presentes e em boas condições, decidimos por remontá-lo dentro do centro cultural. Após pesquisa sobre sua origem e uso, descobrimos que ele havia sido construído há 250 anos por africanos escravizados que haviam chegado ao Brasil na Praça XV (a poucos metros de onde hoje é a Casa França-Brasil) e, logo após serem comprados, haviam sido forçados a caminhar acorrentados do litoral carioca até a tal fazenda mineira.

O paiol construído por esses homens e mulheres assistiu à tortura, humilhação, sofrimento e morte deles e de várias gerações de descendentes. Suas peças de madeira seriam vendidas para fazer batentes de portas e janelas de uma pousada próxima a Juiz de Fora. Isso não aconteceu, pois Xangô, o grande rei, o poderoso orixá, apareceu para nós dois e nos indicou que aquela exposição deveria tratar da história do povo negro no Brasil. E foi assim que nasceu Tronco, exposição que apresentava quatro grandes instalações, sendo uma delas intitulada Articulação.

Esse trabalho consistia numa sala escura em cujas paredes estavam fixadas oito pinturas, nas quais podíamos ver representada uma chama acesa sobre um fundo azul-marinho. Às oito peças e suas oito chamas se somava uma última pintura ígnea, feita diretamente sobre a parede quase preta do ambiente. A tal instalação baseava-se na Oréstia, trilogia clássica de Ésquilo – mais especificamente um trecho de seu início que narra a chegada em Atenas da informação da vitória em Troia. A história conta que olheiros permaneceram posicionados próximos a pilhas de madeiras nos topos de nove ilhas e montes durante toda a duração da batalha e que, na noite em que aconteceu a vitória, ateou-se fogo na pilha de madeiras em Troia e, acendendo as outras fogueiras, uma a uma, foi possível levar até Atenas, em poucas horas, a mensagem do fim da guerra. Essa instalação reverberava o desejo de que chegaria o dia em que poderemos anunciar na África a vitória do povo negro no Brasil.

Essa foi a primeira experiência de aproximação que Afonso Tostes (que tem longa história pessoal de relação com a cultura de matriz africana) construiu entre a cultura clássica grega e a história do povo negro no Brasil. Certamente, foi esse o trabalho que abriu os caminhos para a organização de Para as Amarras, nova exposição individual que o artista faz na Galeria Luciana Caravello, a partir de 21 de maio. Desta vez, Tostes lançou-se sobre um estudo sistemático da Telemaquia, primeira parte do clássico A Odisseia, atribuído a Homero, e a relacionou diretamente à Diáspora Africana, violento fenômeno ocorrido entre os séculos 16 e 19, que forçou a imigração de mais de 35 milhões de africanos escravizados e sequestrados de seu continente de origem para as Américas, Ásia e Europa.

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Legenda: Peças de madeira recolhidas da beira de praias cariocas compõe nova série de trabalhos (foto: Cortesia Luciana Caravello Arte Contemporânea)

Entre o céu e o mar

É interessante apontar que A Odisseia é considerada a segunda obra da história da literatura ocidental, enquanto a expressão Diáspora Africana surge entre o fim da década de 1980 e o começo da década de 1990 em um contexto de construção de vocabulário e teoria pós-colonial.

Odisseu foi um herói grego que passou dez anos na Guerra de Troia e, com sua característica astúcia, foi um dos maiores responsáveis pelo fim daquela batalha. A Odisseia conta a história de seu retorno até Ítaca, sua cidade de origem, onde, por sua ausência e pela falta de informações sobre sua vida ou morte, muitos pretendentes cercavam sua mulher de forma abusiva. Telêmaco era o filho do casal que fora afastado do pai muito cedo pela guerra. A Telemaquia conta a história da transformação de Telêmaco adolescente em adulto, no momento em que, temendo pelo futuro da família e do reino de Ítaca, resolve buscar notícias sobre o paradeiro do pai. O trecho pesquisado por Tostes termina justamente com a partida de Telêmaco, que desejava assassinar todos os pretendentes de sua mãe, mas, para isso, precisaria da ajuda de Odisseu. Nesse trecho do poema, nos é narrado um processo de busca pela própria origem e de realização da própria força, que é guiado pela deusa Atena. Apenas nesse início, podemos ler detalhes sobre sacrifícios de animais feitos para os mortos e para a tal deusa, e há trechos, inclusive, em que Atena aparece para Penélope em sonho e para Telêmaco como o rei Mentor, indicando as estratégias que o jovem deveria adotar para obter sucesso. Aliás, eis a origem da palavra “mentor”.

A Diáspora Africana, por sua vez, é também – como definido pela União Africana em 2002 – um processo de busca de qualquer descendente africano por sua origem, além de ser parte fundamental do desenvolvimento atual do continente africano. Na exposição na Luciana Caravello Arte Contemporânea, Tostes entende que o Atlântico que banha o Brasil e a África ainda é o mesmo que nos une e separa. Para essa mostra, ele elaborou uma série de experiências com velas de barco, telas sem chassi, cordas náuticas e um conjunto de peças de madeira recolhidas da beira de praias cariocas com interesse naquilo que está entre o céu e o mar.

É interessante imaginar que a Odisseia é um poema composto originalmente para ser cantado, repassado oralmente, com o mesmo tipo de processo com o qual foi transmitida a cultura negra no Brasil. Há, na poesia de Homero, e na cultura tradicional de terreiro, uma vontade de afirmar um mundo específico para a eternidade. Além disso, A Odisseia também é a história de um processo de sobrevivência, astúcia e de um povo protegido por deuses que se manifestam como sentimentos, poderes e acontecimentos dos homens ou da natureza.

As obras em exposição reverberam a vontade não de um retorno físico à África, mas são plenas na vontade de fortalecer a própria astúcia e contar com a ajuda dos deuses para então descobrir como vencer os usurpadores da justiça.

A seção Vernissage é um projeto realizado em parceria com galerias de arte que prevê a publicação de um texto sobre a obra de um artista que estará em exposição durante os meses de circulação da edição.

*Seção Vernissage publicada originalmente na edição #23