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Postado em 06/02/2012 - 3:00
Arquitetura como dispositivo político
Giselle Beiguelman (@gbeiguelman)

Arquiteto do Ground Zero fala de arquitetura interativa e dos novos projetos em Israel, Brasil e NYC

O arquiteto Daniel Libeskind, internacionalmente conhecido por projetos como o plano de reurbanização do Ground Zero, em Nova York, veio ao Brasil para uma conferência no Rio de Janeiro, no Midrash Centro Cultural.

Em entrevista por Skype, de Nova York, falou das novas obras, como o lustre interativo El Masterpiece, lançado em dezembro, e o projeto do Instituto para Pacientes com Transtorno por Estresse Pós-Traumático a ser construído em Israel, e do Ground Zero. Costurando tudo, seus temas mais recorrentes: memória, história e as dimensões políticas da arquitetura.

Crystal

Legenda: Edíficio Vitra, projeto de Libeskind na cidade de São Paulo

Nascido na Polônia em 1946, Libeskind imigrou para os Estados Unidos com sua família. Estudou música em Israel e em Nova York e nos anos 1970 decidiu estudar arquitetura, tendo realizado inclusive pós-graduação na Essex University (Inglaterra).

Autor de projetos reconhecidos mundialmente como marcos da arquitetura contemporânea, dentre os quais destacam-se o Museu Judaico de Berlim e o teatro Grand Canal, na área portuária de Dublin, na Irlanda, e inúmeros projetos na Ásia, Libeskind conversou com seLecT.

El Masterpiece (2011): App cultura, design responsivo e a combinação entre passado e futuro

O arquiteto lançou recentemente, na última edição da Miami Basel, uma edição limitada do seu primeiro projeto de lighting design, um lustre de quase 3 metros, o El Masterpiece. Responsivo aos comandos de seus usuários, é controlado via iPad por um algoritmo complexo que permite construções dinâmicas com seus 1680 LEDs especialmente produzidos para este projeto, resultando em novos ambientes.

Como a emergente app cultura e a experiência da mobilidade alteram nossos conceitos e as práticas do design e da arquitetura?

Daniel Libeskind: A tecnologia é uma parte muito importante do design, em qualquer outro período da história, e usar tecnologias inteligentes em projetos arquitetônicos é uma ótima ideia.

O uso remoto de dispositivos facilita uma certa experiência de liberdade, mas não muda a arquitetura, pois a arquitetura não lida com os equipamentos, mas com a imaginação, com os sonhos.

Nessa obra em particular, o programa que foi desenvolvido refere-se às estrelas, à cosmologia. Como se sabe, quando olhamos as estrelas, estamos vendo o passado, não o futuro. Então, temos aqui, nesse app, uma metáfora: a tecnologia está mirando o passado e a arquitetura, o futuro. É sobre a combinação entre essas duas partes que essa obra fala.

O responsável pelo desenvolvimento do algoritmo foi seu filho, o astrofísico Noam Libeskind. Foi a primeira vez que trabalharam juntos?

Daniel Libeskind: Foi a primeira vez que trabalhei com meu filho. Eu quase não participei do desenvolvimento porque era muito complexo para minha cabeça. Mas ele pode participar no meu projeto, porque é simples, pois a arquitetura é sobre fazer coisas. Noam trabalhou sobre a ideia de fazer uma simulação da história do universo das luzes ao longo de 30 bilhões de anos em 30 minutos. El Masterpice, portanto, não é um mero objeto decorativo, mas uma profunda meditação acerca da transformação da luz.

É possível então falar hoje de uma arquitetura responsiva, dinamicamente reconfigurada pelos seus usuários?

Daniel Libeskind: A tecnologia está nos permitindo pensar em um ambiente responsivo, mas também em estabilidade. A arquitetura não é apenas sobre transformação, mas também sobre nos dar coisas que não mudam e que não mudarão. E essa tensão entre transformação e estabilidade é a grande questão do nosso agora.

Centro Médico Sheba (Israel), projeto: Guerra, paz e arquitetura como dispositivo político

O Museu de História Militar, em Dresden, o Museu Judaico de Berlim e o Plano Diretor do Ground Zero, em Nova York, são projetos conhecidos de Libeskind porque, além de novos marcos arquitetônicos, constituem declarações políticas sobre a insanidade da guerra, a violência e são um instrumento de reflexão sobre as sequelas desses processos. Ele trabalha agora no projeto do Instituto do Transtorno por Estresse Pós-Traumático do Sheba Medical Center, em Israel. É o primeiro projeto hospitalar de Libeskind. O objetivo é ajudar os pacientes com TEPT a retornar à sociedade como pessoas produtivas.

Dada a relevância da discussão na sociedade israelense e o forte compromisso político embutido em muitos de seus trabalhos, como o projeto arquitetônico concebido pelo senhor responde à demanda de aumentar a probabilidade de um retorno saudável desse tipo de paciente para a sociedade?

Daniel Libeskind: A dimensão política da arquitetura é uma das dimensões da própria história da arquitetura, que diz respeito à politéia, à pólis, à cidade. Arquitetura, portanto, não é um assunto individual, uma coisa em si mesma, praticada por alguém de forma esotérica. É parte da cidade, da democracia, da sociedade como um todo. Não existe para funcionar como um container útil, ela é uma defesa de posição. Defesa essa que diz respeito a sua ética, aos seus pressupostos de justiça social, de beleza e de funcionalidade.

O projeto do Instituto do Sheba Hospital é para vítimas do terrorismo. Não apenas soldados, mas também civis, e não apenas para israelenses, mas também para palestinos e para outras nacionalidades. É um projeto sobre como curar, como recolocar o indivíduo no centro do mundo. Isso me parece ser o fundamento da democracia, pensando o indivíduo não como mera unidade matemática, mas dando a todos o seu próprio espaço ético para criar um mundo melhor.

Criar um lugar para pacientes com estresse pós-traumático implica uma mudança de paradigma, para algo totalmente novo, pois remete à descoberta do que é isso, TEPT, na sociedade contemporânea e, infelizmente, há muitas vítimas de estresse pós-traumático no mundo todo.

E é isso o novo paradigma: Como criar um espaço que, apesar de ligado a um hospital, seja um espaço completamente novo? Que seja um espaço social, algo que vai além do espaço do edifício, e que diga respeito a relações: o espaço que as pessoas precisam para si, mas também o espaço dos seus e dos outros e o espaço onde possam estar juntos.

O senhor costuma criar discursos poéticos por meio da arquitetura. No Museu Judaico de Berlim isso se reflete no famoso vão que nos puxa pra baixo e ao mesmo tempo nos obriga a olhar a luz, que vem de cima. No Museu Militar de Dresden, sua intervenção aparece como um corte histórico, um basta às guerras. Qual é a “assinatura” Libeskind deste projeto?

Daniel Libeskind: A fonte de inspiração… Eu me baseei em um desenho, um bico de pena de Rembrandt. Trata-se de O Rei David em Oração (1652), uma imagem muito bonita e tocante porque nela o rei David aparece na sua solidão, na sua intimidade, antes provavelmente de ir dormir, rezando. Ao seu lado, no chão, está sua harpa. O rei David era um militar, mas era também um grande músico.

Esse rei David é o poder da esperança, porque está alicerçado também pela música. Incorporei essa noção de musicalidade, de poesia, da reverberação da memória no edifício, que para além de suas geometrias complexas, se abre para Tel Aviv e libera o corpo e a mente.

A arquitetura, assim, aparece como um instrumento musical, tem um papel de trazer à vida algo que não é apenas uma função, mas uma força de esperança no futuro.

Como pensar uma arquitetura para a paz?

Daniel Libeskind: O Hospital Sheba é uma ferramenta para a paz. Há vários palestinos lá e pessoas de outros lugares também. É um hospital sem fronteiras. E isso é o fundamento da arquitetura – não ter fronteiras. É nessa arquitetura humanista que eu acredito.

Museus, histórias e memórias

O crítico literário e professor da Columbia University (Nova York) Andreas Huyssen afirma que o movimento global de construção e restauração de museus responde a uma necessidade de nos protegermos da profunda ansiedade que a velocidade da nossa vida cotidiana provoca. A arquitetura dos museus estaria hoje, então, mais ligada ao tempo do que ao espaço?

Daniel Libeskind: Não é por acaso que tantos museus têm sido construídos no mundo todo. Os museus tornaram-se uma espécie de recurso para o encontro, para a formação de comunidades, para o compartilhamento da criatividade. Isso faz com que os museus digam respeito aos sentidos originais da palavra, ou seja, o de templo da musas. Musas essas que são as filhas de Mnemosine, a deusa da memória na mitologia grega. E é sobre a memória que todos esses museus são.

Por outro lado, essa explosão de museus e centro comemorativos é também uma forma de disneyficação da memória, concorda?

Daniel Libeskind: Essa disneyficação da memória e o uso barato da nostalgia é outra coisa. Porque a arquitetura sempre esteve baseada na memória. Não é apenas um objeto de vanguarda, gerado em computador para ser mostrado em uma revista fashion. É um edifício, um espaço que se refere a uma memória profunda, não banal nem facilmente relacionável ao “ aquilo que costumava ser”.

Só a poesia poderia lidar com esse tipo de memória profunda e revelar-nos inclusive aspectos chocantes dessa imemorialidade. Portanto, a arquitetura não é apenas uma forma de orientação no espaço, como uma bússola. É um modo de orientar-se no tempo.

Ground Zero

Daniel Libeskind foi o vencedor do concurso internacional para a reurbanização do Ground Zero, a área devastada no ataque de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova York. O projeto, de acordo o arquiteto e crítico de arquitetura Joseph Giovanni, era o único que conseguia dialogar emocionalmente com os habitantes da cidade, transformando esse “território sagrado em um corolário tridimensional”. A despeito disso, o projeto sofreu modificações impostas pela incorporadora do empreendimento. As discussões sobre o tema atrasaram as obras e geraram inúmeras controvérsias.

Fale-nos sobre a reurbanização do Ground Zero e seus revezes.

Daniel Libeskind: A despeito da grande publicidade sobre todas as brigas e crises que aconteceram, o fato é que as obras estão seguindo exatamente o plano que eu desenhei. Olhando, agora, da janela do meu estúdio, vejo também aspectos do plano que foram imaginados tomando forma…

Não haverá um dia em que tudo estará pronto de uma vez. Mas quem vem a NY pode ver o memorial, que já está aberto ao público e é muito dramático e impressionante, com suas cascatas, e o barulho das águas e o dos carros conferem espiritualidade ao espaço.

No ano que vem, o museu subterrâneo também ficará pronto. Ele fica embaixo dessas cascatas e é muito impactante porque mostra as fundações dos prédios que foram derrubados, e isso é uma parte muito importante do meu projeto. Além disso, temos as torres, a número 1, que é a Torre da Liberdade, e as torres 3 e 4, que são reconstruções e já estão bem visíveis, e o espaço público e as ruas em redor que estão sendo restauradas.

Com o tempo, acredito, as pessoas perceberão que não se trata apenas de mais um empreendimento comercial, mas sim do uso da “comerciabilidade” e de outros dispositivos para criar um espaço público da memória, um espaço para pessoas do mundo todo, como Nova York sempre foi, para mostrar a vitalidade, a vida e a vitória da vida sobre o horror que se abateu sobre essa cidade.

Brasil

Daniel Libeskind está com um projeto em São Paulo, o edifício residencial Vitra, uma torre multifacetada que será construída numa das áreas mais nobres da cidade, no Itaim-Bibi, próximo da avenida Nova Faria Lima.

O senhor está indo para o Rio de Janeiro. Tem algum novo projeto em mente ou a caminho?

Daniel Libeskind: Não tenho nada concreto, mas espero que tenha uma possibilidade de fazer algo. Adoro o Brasil, todas as cidades que conheci – Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. O país está aparecendo de uma forma tão genial no cenário internacional que seria fantástico contribuir de alguma forma. Por meio de um projeto para planejamento urbano, ou replanejamento, lidando com favelas, construindo um belo edifício… Estou aberto.

Colaborou: Juliana Monachesi