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Postado em 04/07/2014 - 12:54
Bahia: uma contra-bienal
Lisette Lagnado, de itaparica

A 3ª Bienal estimula os participantes a se debruçar sobre aberrações da história e, antes mesmo de abrir, já é histórica

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Legenda: Sem título, obra de Juarez Paraíso (1975) (foto: Alfredo Mascarenhas)

O esgotamento do modelo de exposição de grandes bienais de arte, disseminadas a partir dos anos 1990 em centenas de cidades do mundo, ecoa hoje em todos os encontros entre profissionais do circuito. No entanto, eu arriscaria afirmar que a 3ª Bienal da Bahia, sob o comando de Marcelo Rezende (atual diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia), será um ponto fora da curva.

Em que medida a vida política da cidade-sede e as fontes patrocinadoras (públicas e privadas) definem o perfil das bienais? A pergunta, que aguarda um debate urgente acerca da liberdade intelectual da curadoria, atravessa distintos exemplos, como a próxima Manifesta (este ano em São Petersburgo), a Bienal do Mercosul (Porto Alegre) e a Bienal de Sydney (Austrália), entre outras. Já a 3ª Bienal da Bahia é uma iniciativa do Estado, através da Secretaria de Cultura (SecultBA) e convênio entre a Fundação Hansen Bahia e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).

Ao eleger a questão “É tudo Nordeste?”, a 3ª Bienal da Bahia estimula os participantes a se debruçar sobre aberrações da história, como o comércio de escravos, um capítulo-chave na perpetuação do racismo e formas de segregação social. Assim como aprendemos que a África não é apenas dos negros nem o Sul é dos subdesenvolvidos, existiria um Nordeste como conceito que transcende a criação da Sudene? Será possível um dia dissociar a região do coronelismo, dos latifúndios e da luta dos cangaceiros?

Escapar do mainstream neoliberal anuncia o ponto fora da curva. Mas aqui tudo parece obra do destino, orixás e eguns reunidos na mesma assembleia. Como falar de problemas reais? No Nordeste, o real, evocando Glauber Rocha, é surrealista. Décadas de descasos ergueram tantos andaimes na paisagem de Salvador que se desconfia da diferença temporal entre ruínas e restauros. As idiossincrasias do contexto impondo seu ritmo próprio de produção, os curadores da mostra tiveram de atuar como arqueólogos e lançar frentes de trabalho de caráter emergencial e resgatar uma memória histórica e cultural submersa.

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Legenda: ETSEDRON – Massificação I, trabalho de J. Cunha (foto: Alfredo Mascarenhas)

Após compreender que não há outra saída a não ser trabalhar organicamente, ou seja, assimilar dádivas e adversidades do local, a curadoria ocupou, além do MAM, lugares inusitados – do Mosteiro de São Bento a uma casa jesuíta que já funcionou como leprosário, entre outros. O percurso total inclui uma travessia até a Ilha de Itaparica e as cidades de Feira de Santana e Cachoeira (tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), seguindo por uma dezena de municípios. Em princípio, a Bienal será inaugurada em duas etapas – nos dias 29 de maio e 15 de julho –, quando a confusão armada pela Copa será fato consumado. Duplo ato de coragem: desvincular-se da legião de estrangeiros atraídos por um megaevento esportivo, cujos interesses não cruzam o campo da arte, e tampouco fazer o jogo elitista desse circuito. Ledo engano supor que entregará uma mensagem clara na visita profissional de dois dias, três no máximo. Ou melhor, será inaugurada até a data de encerramento, em tempo real.

Decerto, imprensa e mercado figuram entre os requisitos nevrálgicos que determinam se o acontecimento será louvado ou objeto de vaias, mas a Bienal, prometem seus organizadores, foi concebida para atender o público local. São inúmeras as decisões que exigiriam valentia na sua realização. A começar por um osso duro de roer: contabilizar um hiato de quase meio século desde a última Bienal da Bahia.

O termo “mutirão”, que tão bem caracteriza o elo de solidariedade entre membros de uma comunidade unida por uma catástrofe (inundações, terremotos, epidemias), parece mais que adequado. Neste caso, entretanto, a catástrofe não se deve ao impacto da natureza, mas é produto de ações humanas que justificaram o golpe de 1964 e a ditadura. Ora, por que seguir com a chancela de “Bienal da Bahia”? Por que não optar por uma plataforma livre de sinistras lembranças? Encruzilhada de símbolos: fazer tábula rasa do trauma equivale a uma eliminação de arquivos – não pretendia Rui Barbosa apagar a “mancha” da escravidão ao queimar os livros de registros?

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Legenda: Fantasia Sertaneja (1986), obra de Juraci Dórea (foto: Alfredo Mascarenhas)

Nordeste, “condição natural”?

Em parceria com Ana Pato e Ayrson Heráclito (curadores-chefes), a direção desenhou um arco que talvez ainda demore para sair da invisibilidade. Entretanto, terá iluminado trajetórias submetidas a décadas de solidão pela falta de diálogo: aparecem como figuras “totais” desta Bienal Rogério Duarte e Juraci Dórea, inventor de projetos relacionais e ambientais, que, há 40 anos, concebeu o Projeto Terra, expedições pelo sertão que levavam pinturas às feiras livres e construíam esculturas coletivas.

Outros a receber uma atenção monográfica – de novo, trata-se de um tipo de cuidado destinado a remediar uma fragilidade – são Juarez Paraíso, Dicinho, Gilson Barbosa, Babalú (e seu irmão J. Cunha), Almandrade, Edison da Luz, tantos nomes desconhecidos nos grandes centros. De Edinísio Ribeiro Primo, cenários e serigrafias revelam um tropicalista “reencontrado”. Esse tipo de pesquisa curatorial despertou a necessidade de inventários e catalogações. Um ponto alto a destacar é o deslocamento para o Arquivo Público do Estado da Bahia de parte do acervo do Museu Antropológico Estácio de Lima, que guardava desde um Di Cavalcanti até armas e objetos pessoais de Lampião, entre mil objetos hediondos, como corpos mumificados, bocais com embriões e amostras de tóxico apreendidas pela polícia.

O sentido expandido de Nordeste incorpora Minas Gerais com inserções dos Cadernos de África de Paulo Nazareth. Mas o risco de a pauta virar “É tudo Bahia?” resume uma inquietação de Ícaro Lira. Planeja um grupo que irá até Canudos para investigar migrações e retomar os campos de concentração de 1932 no Ceará. Os dados estão lançados: a profusão de datas e personagens históricos confere densidade política à curadoria; porém, tendo dado as costas para a lógica da globalização, nada garante a continuidade do evento.

Com um programa de residências ao longo do ano e a abertura de casas de artistas como locais de exposição; sem um arquiteto assinando o display (embora Lina Bo Bardi paire onipresente) nem uma lista de estrelas da arte internacional; eis uma contra-Bienal cujos processos vivenciais e lastro de autenticidade suplantam a exigência da “boa” arte. Antes mesmo de abrir já é histórica.

A curadora Lisette Lagnado foi residente convidada da 3a Bienal da Bahia no Instituto Sacatar, em Itaparica, de 27/4 a 12/5

*Preview publicado originalmente na edição #18