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Postado em 27/01/2012 - 2:38
Bits da discórdia
Giselle Beiguelman

Tania Rösing, Jean-Pierre Balpe e Cassiano Elek Machado discutem as transformações da literatura depois da internet e o texto sem autor

Bits_da_discordia

A história da literatura mostra que transformações tecnológicas nas formas de produção e reprodução da escrita implicaram a possibilidade de novos formatos textuais e narrativos. com a popularização dos tablets, a disseminação dos e-books e as possibilidades de automação do texto, passamos a ser testemunhas oculares de um furacão de tendências e incertezas no campo da literatura. Para discutir as implicações críticas, afetivas e criativas do processo de digitalização da literatura, seLeCt convidou Tania Rösing, criadora e diretora da Jornada Literária de Passo Fundo (rs), maior e mais antigo evento dedicado a autores e livros do país, Jean-Pierre Balpe, poeta multimídia e professor emérito da universidade de paris 8, onde fundou o departamento de hipermídia, e Cassiano Elek Machado, ex-curador da Flip, jornalista e editor de alguns dos principais veículos do jornalismo cultural brasileiro e atual diretor editorial da Cosac & Naify. Bibliófilos de toda vida, afirmam que largariam sem grandes crises suas bibliotecas pessoais e as trocariam por um bom computador. É o único ponto de concordância entre eles.

No resto, divergem sobre os campos da criação mais afetados pelo surgimento do texto eletrônico e a possibilidade de uma literatura sem autor humano, entre outros assuntos. Nas suas dissonâncias, apontam as várias direções imbricadas às transformações do nosso presente.

Qual foi a invenção responsável pelas maiores transformações nas formas de fazer literatura?

Tania Rösing A internet. Ela foi responsável pela emergência de novos formatos textuais e narrativos. A linearidade dos textos impressos em livros foi substituída pela hipertextualidade, que propicia intermináveis caminhos de leitura. Acrescente-se a isso o uso da multimídia e as possibilidades infinitas de interatividade entre autor e leitor, que estimulam as criações colaborativas, mudando conceitos tradicionais de autoria. Mais recentemente, nos tablets, tem-se acesso aos aplicativos de literatura infantil e juvenil e a proposta de um novo jeito de ler.

Cassiano Elek Machado É muito difícil quantificar qual invenção teve maior impacto. A invenção do papel, da escrita cuneiforme, a criação dos tipos móveis e tantas outras grandes revoluções tecnológicas deixaram suas marcas na maneira como o homem pensa, cria, registra suas ideias e as difunde. Temos o privilégio de ver um novo capítulo dessa história sendo escrito. E podemos acompanhar isso on-line. 

Jean-Pierre Balpe As primeiras manifestações da literatura eram orais. Mas, para ter uma literatura não oral, era necessário inventar a escrita e um suporte adequado a ela. Por isso, o papel foi uma grande invenção. A prensa também foi muito importante para criar literatura e, depois, o computador. A literatura é resultado de um longo processo de mudanças técnicas.

Se você tivesse de ir para uma ilha, com direito a levar tudo e quem quisesse, o que escolheria: a biblioteca pessoal ou seu computador com conexão à interner? Por quê?

Rösing É claro que levaria o computador ou meu tablet. Por sua portabilidade, pela riqueza interminável de conteúdo em todas as áreas do conhecimento, pelas possibilidades de estar na ilha, mas não ficar ilhada.

Elek Machado Por maior que seja o meu apego pelo livro impresso, e ainda prefira ler no papel, o computador seria imbatível, sem contar que, com internet, eu poderia facilmente pedir que me resgatassem.

Balpe Eu levaria só o meu computador, porque ele contém uma biblioteca maior que a minha de livros. Com o meu computador eu estou no centro de todas as bibliotecas do mundo. E mesmo se não tiver conexão à internet, há livros suficientes guardados nele para ler durante a vida inteira.

Comparando a prosa à poesia dos últimos 20 anos, você concorda que a poesia sofreu impactos mais substanciais diante da emergência do computador?

Rösing Aparentemente, é a poesia digital o gênero literário que mais fala a linguagem das novas tecnologias. Na poesia, há manifestações dessas inovações criativas desde o fim dos anos 1950. A narrativa em meio digital, por sua vez, é um problema a ser estudado, já que nem sempre pode ter literariedade. Na ordem de um mundo sem início, meio e fim, a linha narrativa de múltiplas possibilidades parece intrigar o texto literário na razão ou nas razões de uma infinidade de planos, como uma Babel de Borges, ou como os performáticos jogos de amarelinha de Cortázar.

Elek Machado No meu entender, a prosa e a poesia sofreram transformações semelhantes. Acredito que na poesia as mudanças sejam mais aparentes, pela própria natureza poética de lidar com a carne viva da linguagem. É muito mais simples encontrar poemas que façam uso mais ostensivo dos recursos da informática do que romances ou contos. Já no fim dos anos 1960, por exemplo, o artista Waldemar Cordeiro criava poesia com um computador IBM. Sem ser estudioso dessas questões, eu diria que a prosa pós-informática passou a ser muito mais asséptica e entrecortada do que era nos tempos da pena, da esferográfica ou da máquina de escrever.

Balpe Eu não concordo. O impacto do computador na prosa literária não é tão evidente, mas é mais profundo. Na França, a editora Publie.
net publica livros só em formatos digitais, e eles têm uma coleção de novos autores que estão escrevendo uma nova forma de literatura, baseada no que é legível nas telas.

É possível , hoje, falar em uma e-literatura, ou literatura nativamente digital, conforme evidenciam festivais internacionais. A ela, contudo, não corresponde uma crítica especializada. O  que um crítico especializado em e-literarura deve saber?

Rösing Além de ser leitor proficiente, conhecedor e apreciador da natureza da linguagem literária e da perspectiva estética dos conteúdos, é imprescindível que esse crítico tenha domínio da diversidade peculiar a essa linguagem, entendendo a multiplicidade do hipertexto e da hipermídia e seus significados junto ao texto verbal. Isso, contudo, não parece ser de todo novo. Crítico literário que conhece apenas literatura nunca foi bom crítico.

Elek Machado Não sendo eu mesmo um e-crítico, teria dificuldade de receitar de que maneira o intérprete da literatura nativamente
digital deveria se aparelhar para avaliá-la. Mas me parece fundamental que os estudiosos da e-ficção conseguissem abrir espaços fora do “e-”, para que a  difusão dessas narrativas não fosse tão endógena.

Balpe Acho que realmente há uma e-literatura e que de fato ainda não existe uma forma de crítica adaptada. É por isso que uma parte do meu trabalho é mais apresentada como instalação artística e outra (novelas na internet, por exemplo) é citada,  mas raramente criticada. É difícil falar sobre um  conteúdo em constante mutação ou de uma história  em que o papel do leitor é fundamental. Tudo isso  é tão diferente de nossa tradição crítica baseada na  literatura de livros fixos… Um crítico especializado  em e-literatura tem de ver, ler, explorar o campo da  literatura eletrônica. Assim, descobrirá por si mesmo como construir uma nova forma de crítica, estabelecendo os aspectos originais dessa literatura.

A sofisticação dos programas e a capacidade de processamento dos computadores permitem a realização de tarefas e ações antes exclusivas do homem. É possível pensar que existirá uma literatura sem autor humano?

Rösing A subjetividade é que determina a participação humana na criação literária, independentemente do suporte em que a literatura vai ser apresentada. É ela que permite ao ser humano manifestar-se pela linguagem e revelar, por meio dela, visões de mundo real ou reinventado, permitindo que o outro possa também se manifestar.

Elek Machado Não creio que exista qualquer impeditivo técnico para uma literatura a-humana. Mas é impossível falar em extinção da literatura humana por conta de qualquer avanço tecnológico. Por mais que o Deep Blue tenha vencido Garry Kasparov há quase 15 anos, não me parece que os homens tenham deixado de jogar xadrez.

Balpe A literatura é uma tarefa fundamentalmente humana. A boa literatura muda as regras da escrita vigentes. Um autômato é capaz apenas de aplicar essas regras. Somente um escritor pode, por ora, alterar as regras da escrita e, eventualmente, dar novas regras ao computador. Se a literatura fosse qualquer tipo de texto, seria possível uma literatura generativa sem condução humana. Mas, para que seja uma forma de literatura, é preciso que alguém ordene esse processo e afirme que aquele texto é literário. Se um autor decide que um texto é literatura e se algum leitor o aceita como literatura, então é literatura. A literatura é um conceito humano de alto nível. Portanto, o lugar do autor humano pode ser pequeno, mas existe.

*Publicado originalmente na edição impressa #3.