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Postado em 23/11/2022 - 5:23
Cerrado em movimento
Documentários, videoclipes, curtas e longas-metragens expandem a ideia comum sobre o bioma, abordando as camadas e disputas de imaginários em seus territórios

Qual imagem você vê quando pensa no Cerrado? Na imaginação comum, esse bioma é ilustrado pelo Sertão, coberto por árvores secas e retorcidas, cascas espessas, folhas grossas, clima árido e poeira no ar. Não que isso não seja verdade, mas não o totaliza. Como todo estereótipo, são características determinadas a partir de um olhar geral e não específico, sem uma análise atenta sobre o objeto em questão.

Como um caleidoscópio, o Centro-Oeste é muito mais do que se imagina, seja em relação à sua extensão territorial, à sua rica e ameaçada biodiversidade (leia mais em Por um fio, Mundo Codificado da edição #56, disponível aqui) e, principalmente, ao seu poderoso e emergente cenário cultural-artístico. O Cerrado, enquanto território e identidade, é objeto de estudo e debate de diversos artistas contemporâneos que trabalham com imagens em movimento, em trabalhos que retratam diferentes facetas da região para travar críticas sociais e políticas pertinentes em um momento de revisão das histórias brasileiras.

BEM-VINDX AO BRAZIL
Entre a ficção científica e o documentário Branco Sai, Preto Fica (2014), dirigido pelo cineasta goiano Adirley Queirós, desenvolve uma narrativa sobre o racismo da violência policial e a responsabilidade do Estado brasileiro perante esses crimes.

O longa apresenta os personagens Marquim da Tropa e Shockito, homens negros que, na juventude, faziam parte de um grupo de dança e frequentavam o Quarentão, baile de black music em Brasília, nos anos 1980. Em meio a flashes de lembranças num estilo documental, que recordam cenas da noite em que policiais invadiram o baile e os personagens foram marcados para a vida, há ainda a história de outro personagem, vivido por Dilmar Durães, um viajante do futuro cuja missão é investigar o crime ocorrido naquela noite e provar a culpa do Estado brasileiro.

A produção de Queirós venceu 11 prêmios no Festival de Brasília de 2014, entre eles o de Melhor Filme, e foi selecionado em vários festivais internacionais, colocando a paisagem escura, suja e incompleta da Ceilândia, cidade natal do diretor, em foco. O título, explicado logo no início do filme, faz referência à ordem dos policiais quando invadem o Quarentão: “Puta prum lado e viado pro outro! (…) Tô falando que branco pra fora e preto aqui dentro! Branco sai e preto fica, porra!” Eram os anos 80, mas podia perfeitamente ser 2022.

Para além da ficção, Branco Sai, Preto Fica conecta o espectador à realidade atual de violência e injustiça do país, enraizada no preconceito colonial de uma instituição que atua na contramão do dever de promover a proteção e a segurança de todos os cidadãos.

"PARA ALÉM DA FICÇÃO, BRANCO SAI, PRETO FICA CONECTA O ESPECTADOR À REALIDADE ATUAL DE VIOLÊNCIA E INJUSTIÇA DO PAÍS"

SOU CERRADO, NÃO ME CALO
Na direção certa, Rosa Luz, artista visual e rapper, cria do Gama, periferia do Distrito Federal, debate assuntos como transexualidade, raça, classe e gênero ao misturar fotografia, música e autorretrato em rimas e videoclipes que abordam, a partir de uma perspectiva intersecional, vivências no país que mais mata trans e travestis.

Suas experimentações com música e artes visuais começaram em 2016, quando criou um canal no YouTube chamado Barraco da Rosa – hoje intitulado Ros4. Lá, a artista publicava vídeos caseiros sobre sua jornada como mulher transexual, compartilhando momentos sofridos de transfobia e racismo institucional. “Nasci e morei no Gama-DF. Me sinto influenciada pelo Cerrado e pela história da construção de Brasília, já que meus avós largaram o Nordeste num caminhão pau de arara para construir uma nova vida”, conta Rosa Luz à seLecT. O canal foi essencial para a sua carreira como artista visual e musical deslanchar, resultando, em 2015, em uma campanha de financiamento coletivo para o lançamento de seu primeiro EP, intitulado Rosa Maria, Codinome Rosa Luz (2017). O trabalho é dividido em seis partes, e está disponível em todas as plataformas de streaming.

Exposto no 36ª Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2019, o videoclipe da música Pt. 1: Rosa Maria, Codinome Rosa Luz é uma espécie de documentário com rimas autobiográficas. Referenciando o “repente”, a música denuncia a sociedade falocêntrica, machista e racista do Brasil, estabelecendo com sucesso, por meio do rap, o ponto de encontro entre as artes visuais e a palavra. “Alguns de meus clipes, como 101 e Alienígena, foram gravados entre o Gama-DF e Santa Maria-DF, na intenção de registrar cenas locais do bairro onde morei, além do vermelho como elemento visual. São as fronteiras entre música e artes visuais”, diz.

Frame de clipe de Rosa Luz
Frame de clipe de Rosa Luz
Frame de clipe de Rosa Luz

MULHERES COMO ESPELHOS
Um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. Isso é Teko Haxy – Ser Imperfeita (2016), documentário experimental de Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro, que registra a relação entre duas artistas, uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não indígena.

Diante da câmera, as artistas criam personagens e assumem uma estética íntima – um diário relacional – em um experimento visual. Nesse processo, elas se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens, abordando questões estéticas e subjetivas, derivando do ato de filmar a outra e a si mesma e refletir sobre essas diferenças. “Somos iguais porque somos duas mulheres imperfeitas no mundo imperfeito e, ao mesmo tempo, somos diferentes. Tivemos de nos adaptar às nossas condições de existência e transformar nossas realidades para a realização do filme – algo que se parece fluido em se fazer”, escrevem as artistas.

O documentário registra um período de quase três anos, desde o primeiro encontro, em 2015, até aderirem à linguagem das videocartas. Foi um esforço mútuo, pois, de um lado, estava uma pessoa com pensamento juruá (branco) e, do outro, uma pessoa com os pensamentos Mbyá e uma visão diferente das coisas. É nesse lugar entre o eu e a outra (e quem nessa relação é a outra?), entre observar o real e inventar o real, entre fazer e esperar acontecer que a relação se estreita e gera possibilidades estéticas e políticas por meio de conversas entre imagens. Aqui se localiza o filme, em uma dobra no tempo, sobrepondo passado, presente e futuro. Um tempo que ambas aprenderam a ter.

"AQUI SE LOCALIZA O FILME, EM UMA DOBRA NO TEMPO, SOBREPONDO PASSADO, PRESENTE E FUTURO"

A HISTÓRIA DA GENTE É TAMBÉM A HISTÓRIA DO MUNDO
Benedito Ferreira é um artista visual que investiga a imagem como escrita, a poética dos arquivos e das montagens, os apagamentos de limites entre documento e ficção. Em 2014, ele recebeu um convite para acompanhar e filmar uma das maiores cavalgadas do Brasil, que saía de Goiânia com destino ao município de Aruanã, localizado na região noroeste de Goiás.

A cavalgada varria mais de 300 quilômetros em dez dias, quase inteiramente por estradas de terra, e percorria um Goiás profundo, rural e tradicional. No trajeto desde Goiânia, passou-se por Goianira, Avelinópolis, Americano do Brasil, Goiás Velho, Buenolândia e, finalmente, Aruanã, cidade banhada pelo Rio Araguaia.

O documentário é uma narrativa sobre a força de superação demandada na longa e dura viagem e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a relação entre ser humano e cavalo, uma parceria ecológica e evolutiva que ajudou a moldar a civilização humana. A jornada dos cavaleiros envolve não só um desafio físico, mas também o estabelecimento de outro ritmo interno, mais lento e em sintonia com o meio, além desse contato com um Brasil e um Goiás diferentes. “Foi uma experiência que exigiu um novo ritmo para obter êxito, afinal, o trajeto é longo e dificultoso. Passamos por lugares incríveis, alguns de difícil acesso. Participar dessa experiência e registrá-la foi inesquecível”, ressalta Ferreira à seLecT.

Anos depois da aventura, o diretor percebeu, nas mais de 20 horas de material gravado, a adoção de procedimentos semelhantes na feitura dos enquadramentos das paisagens e nas artimanhas de apresentação de cavalos e cavaleiros em cena; nos campos de soja que roem a paisagem do Cerrado e nos detalhes da arquitetura de casebres e pontes empoeiradas. O material compõe o documentário Cavalo Sem Nome (2014), projeto que passa por uma nova montagem sempre que é exibido.

Cada convite para participar de uma nova mostra ou exposição dispara um novo corte. Ao término do período de exibição, os arquivos utilizados na edição em questão – e mesmo a versão apresentada – são irrecuperavelmente deletados do único HD. “O material tomou forma anos mais tarde, quando foi possível olhar para o conjunto de imagens e refletir sobre a natureza, o avanço do agronegócio, a masculinidade, a arquitetura de casebres e pontes. Então, sempre que produzo um novo corte de Cavalo Sem Nome, atribuo um novo olhar, com foco em determinados sentidos que as imagens parecem solicitar de mim. Acredito que algumas imagens pedem para ser encontradas. Meu trabalho de artista é moldar e destruir esses arquivos, como forma de propor um novo filme de viagem, uma despedida em retrospectiva constante”, explica o artista.

Frame de Cavalo Sem Nome, de Benedito Ferreira (2014) [Foto: Cortesia do artista]
"UMA REFLEXÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE SER HUMANO E CAVALO, UMA PARECRIA ECOLÓGICA E EVOLUTIVA QUE AJUDOU A MOLDAR A CIVILIZAÇÃO HUMANA"
Frame de Cavalo Sem Nome, de Benedito Ferreira (2014) [Foto: Cortesia do artista]

CINCO ANOS EM 50
No projeto Atlas Superficcional Mundial, Guerreiro do Divino Amor, artista multimídia nascido na Suíça e residente no Rio, cria um universo de ficção científica a partir de elementos da realidade social contemporânea brasileira. Sua poética parte de confrontos e composições entre duas orientações civilizatórias que disputam o controle da Terra e da mente dos seus habitantes: o império, com sua lógica colonial, matemática e higienista, e a pluriversal e instintiva galáxia, que remete à Terra como um pequeno planeta de um grande sistema que em muito nos ultrapassa. É em torno dessas denúncias e ficções que Guerreiro produz o curta experimental A Cristalização de Brasília (2019), da série Superficções.

Uma epopeia vista a partir da construção da capital brasileira, o vídeo discorre sobre o racionalismo mítico e a narrativa neocolonial do país, transformando radicalmente sua imagem, som e história, a fim de deslocar Brasília do lugar-comum. O filme aborda personagens presentes na construção da cidade e fora dela, como os candangos que construíram a nova capital. Em modo apropriacionista, articula as promessas do “novo” nos discursos políticos e comerciais voltados a fazer a cabeça da classe média, chegando naquilo que o artista chama de “superficção” – ou aquilo que é realmente o “real”.

Assim, muito antes de estarmos afogados em falsas verdades e fake news, a Pesquisa de Guerreiro do Divino Amor explora as forças ocultas que interferem na construção do território e do imaginário coletivo, as Superficções. A partir de fragmentos desviados da realidade e de estudos multidisciplinares sobre cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, o artista constrói sua ficção científica crítica da sociedade brasileira.

Como A Cristalização de Brasília – que faz do excesso um recorrente recurso de linguagem –, todos os vídeos mencionados aqui de certa forma investigam as múltiplas ficções e mitos em torno da capital federal e chamam atenção para as disputas e os imaginários coletivos que rondam as metrópoles brasileiras.

"O VÍDEO DISCORRE SOBRE O RACIONALISMO MÍTICO E A NARRATIVA NEOCOLONIAL DO PAÍS"