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Postado em 26/02/2012 - 2:56
De que se fala quando falam de natureza
Juliana Monachesi

Exposições em São Paulo e Belo Horizonte tentam estabelecer uma conexão entre arte e natureza, com resultados incoerentes

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Legenda: Escultura de Mello Witkowski Pinto instalada no Parque Estadual Alberto Löfgren de São Paulo

Um índio algo deslocado, empunhando uma arco-e-flecha imaginário à beira de um dos lagos do Horto Florestal, o corpo coberto de tinta vermelha, parece ser um trabalho de denúncia sobre a relação mutuamente excludente entre grandes metrópoles (o horto, apesar de ser um pedaço de floresta preservada enquanto tal dentro de São Paulo, não deixa de ser artificial em seus aspectos de fauna e flora “domadas”) e povos indígenas nativos. Certo? A julgar pelo depoimento do artista em material de divulgação da mostra Arte e Meio Ambiente: Rompendo Fronteiras, em cartaz no Museu do Horto desde o dia 12, a impressão está errada.

Tanto Mello Witkowski Pinto, autor da escultura em resina e fibra de vidro intitulada Índio Puro (2008), quanto Margherita Leoni, que são os dois artistas cujos trabalhos estão reunidos na exposição, defendem que o propósito das obras apresentadas é abordar a “relação de equilíbrio com a natureza”. Leoni, em um painel monumental também instalado fora do museu, retrata plantas brasileiras nativas em escala agigantada. São 40 metros de painéis que formam um percurso em S e que resultam da ampliação e impressão de desenhos de observação que a artista realiza há dez anos – seu acervo de aquarelas tem registrados mais de 200 tipos de vegetação tipicamente brasileira.

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Legenda: Paradiso Terrestre (2012), obra de Margherita Leoni, impressão sobre painel de alumínio e estrutura metálica

Não fui conferir pessoalmente, mas ambos os trabalhos mencionados parecem ter lá o seu interesse. A escultura, se observada à parte do discurso algo maniqueísta do artista (e considero apenas aquilo que foi veiculado no press release, pois tampouco conversei com os artistas), remete às peças do israelense Yoram Wolberger em que discute estereótipos culturais por meio da ampliação de soldadinhos, índios e cowboys das brincadeiras infantis. A instalação de Margherita Leoni (a não ser pela estrutura metálica em que os painéis foram montados, que polui a obra) promove um contraste instigante entre a atualidade da natureza-morta e os equívocos da land art.

Porém, o descompasso entre o discurso dos artistas e os trabalhos expostos (como, por exemplo, ao intitular a mostra Arte e Meio Ambiente: Rompendo Fronteiras – de que fronteiras se trataria?) vai mais além quando se confrontam as obras com o contexto em que são apresentadas. A exposição, de acorco ainda com o material de divulgação, é uma parceria do Governo Italiano com o Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria do Meio Ambiente: “Após o período em cartaz no Horto [12 de fevereiro a 10 de agosto], a exposição percorrerá, durante quatro anos, os Parques do Estado. A inauguração teve a presença do Senhor Geraldo Alckmin, Governador do Estado de São Paulo e do Senhor Bruno Covas, Secretário de Estado do Meio Ambiente”.

Ou seja, esta visão ingênua da relação entre arte e meio ambiente tem o aval de uma secretaria de Estado e representaria, sobretudo na referida itinerância por diversos parques de São Paulo, a visão do governo estadual sobre a contribuição que a arte pode dar para o debate ecológico. É isso mesmo? Os dois artistas citam preocupações ambientais nas respectivas declarações coligidas no material de divulgação para a mídia, mas ao mesmo tempo demonstram desconhecer as discussões da arte e da teoria ambiental contemporâneas com afirmações como “o desequilíbrio da natureza é um sinal de que o planeta está reagindo às agressões sofridas”. Será que não estamos em uma fase do debate ecoartístico que exige mais sofisticação?

Palácio das Artes apresenta mostra de artistas mineiros que utilizam “matérias-primas encontradas na natureza”

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Legenda: Detalhe da obra Ouroboros, de Annie Rottenstein (Foto: Xará J. Moysés/Divulgação)

A ecologia virou moeda de troca cultural, modismo que afeta qualidade e relevância das obras militantes do tema. Uma exposição em cartaz desde o dia 5 no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, também é divulgada como uma evento focado na ecologia: “Referências à natureza serão o destaque na Grande Galeria. Com obras dedicadas a esse tema, a mostra Duo pretende estabelecer um diálogo entre as produções recentes dos artistas Annie Rottenstein e José Alberto Nemer”, informa o material distribuído para a imprensa. Em realidade, o único e frágil ponto de contato com a natureza nas obras expostas é a utilização de materiais “naturais”.

Bambu, junco, fibras e pigmentos de terra constituem a matéria-prima das esculturas de Annie Rottenstein. As aquarelas de José Alberto Nemer, de resto bastante delicadas e elegantes, fazem uso de água e pigmentos que o texto de divulgação não esclarece se são particularmente “naturais”. Ora, se a ideia era estabelecer um diálogo entre obras recentes de Rottenstein e Nemer, não teria ocorrido a alguém cotejar a organicidade de formas ou a paleta crua presente na produção de ambos? Por que apelar para a natureza quando ela evidentemente não é tema, nem assunto, nem leitmotiv, nem causa ou consequência de obra alguma?

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Legenda: Aquarela de José Alberto Nemer exibida na mostra Duo (Foto: Xará J. Moysés/Divulgação)

Um último exemplo: Nesta terça-feira, 28, uma nova galeria, chamada Fibra, vai ser inaugurada no Pacaembú. A coletiva de inauguração, de nome Origem, reúne trabalhos de Gen Duarte, Ronah Carraro e Fredone Fone. Adivinhe qual elemento entrelaça a produção dos artistas? A fibra de bananeira. Informa o release: “Metade dos trabalhos a serem apresentados foi pintada sobre folhas de fibra de bananeira. Este material reciclado – utilizado na construção civil, nas indústrias automobilística, têxtil e moveleira – na Fibra Galeria passa a ser tratado como suporte para arte”.

Quando foi que a reciclagem, a ecologia, a aproximação com a natureza ou sua tematização se tornaram um valor estético “em si”? O fato de a questão ambiental estar “na moda”, em grande parte devido à sua urgência e inescapabilidade, não justifica a utilização indiscriminada e gratuita do tema para conferir atualidade ou relevância a eventos de arte, obras ou o que quer que seja. Pelo contrário, exige dos artistas ou de quem pretenda abraçar a causa maior seriedade e compromisso com seu objeto de estudo/trabalho, tendo em vista o risco de uma dupla banalização: da própria obra ou, pior, do tema em questão. Ou seria mero acaso o fato de os experts do meio artístico torcerem o nariz de antemão quando ouvem falar de arte e ecologia?