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Postado em 15/07/2015 - 7:00
Estéticas do código materializador
Giselle Beiguelman

O código computacional está para as linguagens de programação assim como a palavra está para a comunicação verbal. Artistas como Eduardo Kac e designers como Guto Requena exploram em suas obras as poéticas da cultura codificada pelos processos de digitalização

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Legenda: Este objeto acima é um banquinho e pertence à série Samba, de Guto Requena. Moldado em mármore de Carrara, é parametrizado com informações decodificadas das ondas sonoras de A Pastorinha e O Canto de Ossanha. (Foto: Kourosh Stoodeh)

Sem códigos não há possibilidade de cultura. Esse é um raciocínio caro ao filósofo Vilém Flusser, para quem os códigos são o instrumento mais poderoso criado pelo homem para superar, por meio da tecnologia, nossas limitações em relação ao mundo natural.

O crescimento intelectual do homem, do ponto de vista de Flusser, está diretamente relacionado à capacidade de transgredir a natureza, criando estratégias de abstração de seu próprio corpo animal e demandando mais e mais educação e preparo crítico. São eles, afinal, que permitiram, por meio da escrita e das imagens, que se elaborassem os registros e as interpretações da história e que se expandissem as fronteiras do imaginário por meio da arte e da ciência.

Apesar de o fenômeno ter uma história de dezenas de milhares de anos, torna-se mais relevante no século 21, com o aumento da presença da computação no cotidiano. Não seria exagero dizer que o código computacional está para as linguagens de programação assim como a palavra está para a comunicação verbal. É a matéria-prima dos sistemas culturais da nossa época. Infiltra-se em praticamente todas as atividades como uma espécie de legenda alfanumérica de tudo que nos cerca e operamos.

Contudo, diferentemente das palavras, que apenas transmitem informações sobre as coisas – descrevendo ações ou nomeando o que nos cerca –, os códigos computacionais são também executáveis, desempenhando as ações que descrevem. Isso nos insere em um contexto cultural emergente, em que as formas são resultantes de processos de codificação, em vez de ser fruto da modelagem imediata. Os impactos desses processos se desdobram desde o design dos objetos que usamos até a própria compreensão do que é a biologia.

No nível mais imediato de nossa experiência social, os processos de codificação digital conectam-se às relações afetivas, em redes sociais cujos algoritmos respondem às hashtags que usamos, e organizam, sem que tenhamos controle, as hierarquias de nossos relacionamentos e interesses que aparecem nas nossas timelines.

Criadores como o artista Eduardo Kac e o designer Guto Requena exploram os limites da cultura codificada pelos processos de digitalização. Em suas obras investigam o imaginário das novas poéticas da vida e dos afetos mediados pelas linguagens de programação.

Gatos atacam Gattaca 

Não é de hoje que Eduardo Kac explora as fronteiras do código genético no campo da arte. Dedicado à reflexão sobre arte e biotecnologia desde 1997, quando apresentou A Positivo (Positive A), em Chicago, incorporou a engenharia genética ao seu trabalho em 1999, tendo o início do projeto Gênesis como marco de sua incursão no que chama de arte transgênica. Nessa obra partiu da tradução de uma frase bíblica em Código Morse que, ao ser retraduzida na estrutura de DNA, dava vida a um gene artificial, o qual foi injetado em uma bactéria.

A frase original vinha do próprio livro bíblico do Gênesis e dizia: “Que o homem domine os peixes do mar e o voo no ar e sobre todos os seres que vivem na Terra”. Pela internet, os espectadores podiam modificá-la, controlando a iluminação ultravioleta do espaço e, com isso, causando mutações no código genético da bactéria. Kac introduzia aí novos elementos à discussão sobre poder e tecnologia, ética e estética, chamando a atenção para o peso da tradição religiosa nas crenças científicas e questionando todo tipo de heranças imutáveis.

Depois da realização de obras que se tornaram marco na história da arte contemporânea, como GFP Bunny (2002), o artista voltou a essa mesma metodologia de trabalho metalinguístico sobre o código genético, porém de forma compartilhada com o público. Por meio de um livro-objeto, em Cypher – Um Kit Transgênico DIY (2009), oferece um laboratório portátil que contém uma bactéria sintética. Seu DNA sintetizado em laboratório traz codificado um verso do artista: “A tagged cat atacked Gattaca”. Cabe ao leitor dar vida à bactéria-poema ou não.

A frase poética, que repercute a incidência das letras que representam as quatro bases do código genético (A, C, G e T, correspondentes a Adenina, Citosina, Guanino e Timino), foi traduzida para esse código, associando às vogais valores triplicados das letras do código, como I = AAA, e duplicados às consoantes que não aparecem nas bases (L = TT), por exemplo.

Com o objetivo de diminuir a ambiguidade das sequências no código e para mantê-lo o mais curto possível (para melhorar a eficiência molecular), atribuiu às quatro consoantes da frase que não pertencem ao código genético (D, K, W e L) letras que representam duplas dos ácidos nucleicos (TT, por exemplo). Às duas outras vogais da frase (E e I) foram associadas letras triplas que também representam os ácidos nucleicos.

O poema faz uma referência clara ao filme Gattaca, ficção científica sobre como as tecnologias reprodutivas controladas geneticamente podem apontar para um mundo eugênico. E, nesse contexto, não é fortuita a ambivalência da ideia de um tagged cat que aparece no verso de Kac. Ela remete tanto à ideia de um gato marcado na carne (como gado) como à de uma gato sinalizado por hashtags, como um metadado das redes sociais.

Nesse contexto, Cypher torna-se, segundo Kac, “uma declaração contra uma sociedade com uma crença determinista na influência totalmente determinante dos genes, uma declaração contra a crença determinista na biologia e na vida”. Como diz Karen Verschooren, curadora da mostra Alter Nature: We Can (2010), “ao empacotar o trabalho artístico em um kit DIY, Kac convida o público a tomar suas próprias decisões sobre a tecnologia”. Afinal, para ele, “somos todos analfabetos e devemos dominar um novo idioma, a fim de evitar que ele seja usado para nos controlar”.

O processo de tradução utilizado por Kac, remete àquilo que a crítica norte-americana Katherine Hayles denomina, em Writing Machines, “tecnotexto”, o texto que interroga a tecnologia de inscrição que a produz, mobilizando loops reflexivos entre seu mundo imaginário e o aparato material que o incorporou como presença física. Um exercício que parece estar no centro da prática projetual do arquiteto e designer Guto Requena, que transforma histórias de amor em mandalas e sambas em banquinhos de mármore de Carrara.

Objetos sensíveis 

Munido de sensores para captar batimentos cardíacos, modulações de voz e ondas cerebrais, Requena recolhe histórias de amor, narradas oralmente. As variações no ritmo dos depoimentos são gravadas e depois padronizadas por um programa. Transformadas em dados, as narrativas são então enviadas para uma impressora 3D, que as processa como objetos físicos.

Posteriormente a esse projeto – Love Project (2014) –, o designer deu início à série de bancos de mármore, Samba. Outra vez, os processos de tradução entre linguagens ocupam o centro da atividade criativa. Nesse caso, gravações de dois sambas clássicos – As Pastorinhas, de Noel Rosa, e Canto de Ossanha, de Vinicius de Moraes, foram usadas como inputs.

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Legenda: No projeto Love, o designer Guto Requena, na imagem, implanta sensores para monitorar batimentos cardíacos e as ondas cerebrais do público que conta suas histórias de amor. As informações são convertidas em parâmetro para uma impressora 3D que fabrica digitalmente mandalas personalizadas (Foto: Cortesia do artista)

“De ambas foram extraídos parâmetros como vocais, graves, agudos e médios. A partir desses dados foram obtidas frequências e informações. Ao final, curvas foram geradas, crescendo em tempo real, de acordo com a música”, explica Requena. Essas curvas extraídas das informações parametrizadas pelo programa de decodificação das vozes de Chico Buarque e Vinicius de Moraes cantando os sambas funcionam assim como uma espécie de visualização dos dados contidos nas canções.

No fim, são enviadas ao um torno computadorizado (uma máquina CNC – Computer Numeric Control) que esculpe em mármore de Carrara a palavra cantada que se transformou em arquivo digital.

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Legenda: Uma das mandalas criadas via impressora 3D (Foto: Cortesia do artista)

Ao consolidar-se como objeto, no fim do percurso, é impossível não notar um rastro de vida que parece derreter suavemente a superfície da pedra branca. O paradoxal atrito entre mineral e orgânico aqui é na verdade a resultante de um processo de hibridação. Ele funde as palavras e as coisas no contexto de uma nova cultura “materializadora”, como queria Flusser.

“Antigamente (desde Platão ou mesmo antes dele), o que importava era configurar a matéria existente para torná-la visível, mas agora o que está em jogo é preencher com matéria uma torrente de forma que brota a partir de uma perspectiva teórica e de nossos equipamentos técnicos, com a finalidade de ‘materializar’ essas formas. (…) Isso é o que se entende por ‘cultura imaterial’, mas deveria na verdade se chamar ‘cultura materializadora’”, escreveu Vilém Flusser em O Mundo Codificado (2007).