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Postado em 06/02/2013 - 10:18
Fora de foco
Paula Alzugaray

O dossiê cultural produzido pela revista Carta Capital de 6 de fevereiro quer discutir um suposto “vazio da cultura”, mas o que faz, na realidade, é mostrar o entendimento esvaziado que a imprensa brasileira tem da produção artística e cultural contemporânea.

Os motivos que levam os editores da revista a dedicar 13 páginas a tal corpo de matérias são notáveis: faz-se premente atentar para a necessidade de políticas de estado para a cultura, que funcionem independentemente da existência de renúncia fiscal e que livrem a cultura de sua submissão às leis do mercado – mecanismo vicioso que cria relações desiguais entre as partes.

O problema é que a Carta Capital sustenta seus argumentos sobre a tese de que a cultura brasileira “se encontra debilitada em relação ao passado cultural recente do país”. Ora, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Uma coisa é falar do perigo de achatamento cultural produzido pelos interesses canibais da indústria cultural, da imbecilização do Brasil ou do papel central que a Rede Globo possa exercer nesse processo. Outra coisa é comparar Pixinguinha com Claudia Leitte, como se não houvesse Marisa Monte, Arto Lindsay, Otto, Lucas Santanna. Comparar Portinari com Romero Brito, ignorando solenemente as três gerações de pintores que, desde anos 1980 aos anos 2010 nos brindam com a arte vigorosa de Dudi Maria Rosa, Paulo Pasta, Rodrigo Andrade, Fabio Miguez, Rodrigo Bivar, Tatiana Blass… Só para começar a falar de pintura.

É no mínimo questionável que se isole Paulo Mendes da Rocha e Paulinho da Viola no altar dos “maiores da atualidade”. Não porque não sejam grandes. De forma alguma. O que se questiona aqui é uma tendência a observar a cultura como ranking, cotação, pódio esportivo. O problemático é não entendê-la em sua complexidade, transversalidade, diversidade.

Para a indagação de que a cultura brasileira “se encontra debilitada em relação ao passado cultural recente do país”, o crítico Alfredo Bosi, entrevistado sobre as tensões entre indústria cultural e resistência artística: “Não existe uma cultura brasileira única e homogênea”. Com essa frase, Bosi desconstrói pela raiz a tese do vazio cultural. 

É verdade que a revista dedica três generosas páginas a uma cuidadosa análise de O Som ao Redor, revelação de Kleber Mendonça Filho, que despontou como uma flor no deserto intelectual dos megalançamentos do mercado cinematográfico. E assim faz muito bem o seu papel. Outras semanais não o fizeram. É um grande equívoco, porém, relegar a existência de vida inteligente na cultura brasileira a uma zona de “relativa escuridão”. Depois que surgiu a internet, não existe a escuridão. É bom lembrar que muito antes de explodir como a musa do tecnobrega e chegar à projeção global como jurada no caldeirão do Huck, a cantora paraense Gaby Amarantos surgiu como um fenômeno viral no YouTube. 

“Que vazio? Vamos ocupar esse vazio!”, indagou Ivana Bentes, professora e pesquisadora da Escola de Comunicacão da UFRJ, no debate travado nas redes sociais essa semana. “Essa matéria da Carta Capital! é sintoma, mais do que “diagnóstico”! Sintoma de um tipo de discurso, grupo social e mídia que perdeu poder de “formar” opinião. Parte da produção cultural contemporânea passa por outros circuitos de legitimação, dos próprios pares, redes e grupos. Crise de quem “autenticava” e carimbava “isso é cultura!” É fato que existe uma indústria cultural no Brasil que “forma” e “deforma”, mas não é esse discurso do “vazio” que vai apontar as novas dinâmicas, processos, em curso. Paradoxalmente a indústria cultural está mais atenta a nova cena cultural que esse discurso do “vazio”.

Outro sintoma do autoritarismo a que Bentes se refere é o statement do colunista de Carta Capital, Vladimir Safatle, de que não existe revista de crítica de arte no Brasil. Soma-se o comentário desinformado que “artistas plásticos promissores continuam a aparecer em várias partes do mundo”. Menos no Brasil. 

Quando todos os olhos do sistema de arte internacional se voltam para o contexto artístico brasileiro – a exemplo de três casos mais recentes, como a coleção suíça de arte latino-americana ganhar sede no Rio de Janeiro; a maior galeria do Reino Unido abrir filial em São Paulo; e o Centre Pompidou de Paris viajar para “dialogar” com a coleção de arte brasileira do MAM SP – fica improdutivo embarcar nesse tipo de argumento.

Existe, portanto, a imposição de um vazio que não existe. A revista apresenta um sintoma de astigmatismo, uma visão sem discernimento da realidade.