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Postado em 13/06/2013 - 1:35
Jogos de imagens
Nina Gazire

Do cinema à videoarte, o audiovisual encontra-se com o futebol, revertendo a retórica jornalística da tevê para reescrever a história do olhar

https://www.youtube.com/watch?v=NDn6yL0fU70

Legenda: Alexandre Promio, um dos operadores de câmera dos irmãos Lumière, registou as imagens e uma partida de futebol em Londres, no ano de 1897.

A primeira partida de futebol transmitida ao vivo na televisão foi disputada em 16 de setembro de 1938, em Londres, pela BBC. A partida foi também a primeira cobertura em tempo real de um jogo entre seleções internacionais, no caso, a seleção da Inglaterra contra a da Escócia. Apesar da inovação, a transmissão ao vivo pelo canal não alcançou um grande público e pouco evoluiu tecnicamente até os anos 1950.

Foi o cinema o protagonista que eternizou o futebol em imagens em movimento. O primeiro filme que mostra um jogo de futebol está perdido, mas sabe-se que foi o registro de uma partida do time Newcastle, produzido pelo inventor britânico Robert Paul, em outubro de 1896. Restam à história as imagens realizadas por Alexandre Promio, um dos operadores de câmera dos irmãos Lumière, em Londres, no ano de 1897. Intitulada Futebol, a película mostra duas equipes, sendo uma delas identificada como o Arsenal Football Club. Hoje, um trecho desse filme de apenas 41 segundos está disponível no YouTube (e no vídeo acima), mas durante muito tempo foi na sala escura e na telona que os torcedores viram os heroicos lances futebolísticos que ficariam guardados na memória.

No Brasil, apesar de o primeiro jogo de futebol televisionado ter acontecido em 1955, direto da Vila Belmiro, partida entre Santos e Palmeiras com transmissão pela Rede Record, foi também no cinema que as imagens mais importantes desse esporte conquistaram seu espaço.

“O futebol sempre esteve ligado ao cinema, apesar de a história do futebol também estar ligada à televisão e ao desenvolvimento de tecnologias de transmissão da imagem”, observa Jane de Almeida, pesquisadora do Departamento de Artes Visuais na Universidade da Califórnia, em San Diego (UCSD), e professora da Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Mackenzie e da PUC-SP. Ela é curadora independente na área de cinema e artes visuais e está envolvida com projetos que podem mudar os rumos da transmissão do futebol e resgatar sua relação com o cinema, um tanto esquecida devido à primazia técnica e à ditadura editorial da cobertura televisiva.

Futebol 3D

Legenda: Making of do PROJETO 2014K, que vai transmitir os jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014 no Brasil em resolução 4K/3D para cinemas de ultra-definição através de redes fotônicas.

A pesquisa de Jane de Almeida começou em 2010 e tem como objetivo mudar para sempre o futuro da transmissão das Copas do Mundo a partir de 2014. Exibido durante a Copa da África do Sul, em uma sessão especial que contou com a presença da presidentaDilma Rousseff, o filme, intitulado Futebol 2014, foi realizado em parceria com o pesquisador Cícero Inácio da Silva – coordenador do grupo Software Studies Brasil e professor e pesquisador em Mídias Digitais da Universidade Federal de São Paulo – e colocou o Brasil no mapa das tecnologias de transmissão e captação de imagens de alta definição. Com apenas 7 minutos de duração, esse foi o primeiro filme da história a usar a câmeras com tecnologia 4k 3D, que permitem a captação de imagens digitais em três dimensões com 8 milhões de pixels por frame. A tecnologia foi usada para gravar uma partida de futebol entre o Internacional e o Grêmio, disputada em 2 de maio de 2010, um mês antes da Copa do Mundo. “A escolha do futebol para um projeto experimental como esse, e que visa o cinema, tem como inspiração a estética do antigo Canal 100”, diz ela.

Fundado em 1957 por Carlos Niemeyer, o Canal 100 foi um famoso cinejornal brasileiro dedicado exclusivamente ao futebol e teve suas atividades iniciadas exatamente um ano antes da Copa de 1958, com o intuito de dar aos torcedores uma cobertura cinematográfica do evento que tivesse um cunho mais documental e emocional. Entre as imagens mais antológicas do canal-cinema estão os primeiros registros da atuação de craques brasileiros como Pelé e Garrincha. Futebol 2014 inspirou-se na imagética do Canal 100 ao enfatizar menos os movimentos globais do jogo e focar mais diretamente no pathos da partida de futebol e seus atletas. “Você vê mais a reação dos jogadores, ou aquele momento mais expandido do gol marcado, a reação da torcida. O enfoque não é o detalhamento técnico da partida ou as estratégias de jogo, como é comum em uma cobertura televisiva. O Canal 100 era muito assim, focado em uma experiência mais imersiva da partida”, explica a pesquisadora.

Futebol 2014 faz parte de um projeto maior, o 2014K, que pretende realizar a cobertura da Copa de 2014, primeira a acontecer no Brasil desde 1950, usando a tecnologia 4K 3D com transmissão direta e ao vivo para as salas de cinema do País. O alto grau de resolução das imagens resultantes do uso de câmeras 4K 3D só pode acontecer, tecnicamente, em salas de cinema devidamente equipadas com projetores de grande porte. Outro projeto coordenado por Jane de Almeida objetiva resgatar a relação entre o cinema e o futebol, explorando a história do encontro entre a experimentação estética visual com o esporte. O projeto chama-se Filme Futebol e é uma curadoria, ainda em fase de produção, que pretende levar para as grandes telas e para formatos mais artísticos a história audiovisual do futebol em uma exposição a ser realizada em 2014.

Ênfase emocional

Legenda: Flamengo, de Gustavo Pellizon (2009)

Para a curadoria, Jane de Almeida planeja mostrar em diferentes plataformas, por meio de videoinstalações e telas de grande formatos, trabalhos antológicos do cinema esportivo nacional, como o filme Garrincha, Alegria do Povo (1962), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. “Eu sempre usei esse filme como referência nas minhas aulas. Para mim, é dos filmes pioneiros da técnica do mash-up e do remix, já que seu diretor realizou colagens do jogador em fotos de jornais, imagens de cinema e outras fontes. É dos grandes trabalhos do cinema experimental brasileiro”, comenta Jane.

A curadora e pesquisadora também cita trabalhos mais contemporâneos, como Zidane: Um Retrato do Século 21 (2006), do artista britânico Douglas Gordon e do francês Philippe Parreno, como referência para a interseção entre cinema de arte e futebol. O documentário tem como foco principal a performance do ex-meia Zinedine Zidane, durante uma partida do Real Madrid contra o Villareal, e foi captado com 17 câmeras sincronizadas, que registraram os movimentos do atleta.

Os primeiríssimos planos centrados no jogador remetem a obra para sua principal fonte de inspiração, o filme Football as Never Before (Futebol como Nunca Antes, 1970), do cineasta alemão Hellmuth Costard. Nesse filme, durante uma partida do Manchester United, Costard utilizou oito câmeras de 16 mm para acompanhar exclusivamente os movimentos do jogador irlandês George Best, um dos maiores jogadores de todos os tempos. “Costard, com essa estratégia praticamente tirou Best do campo, criando um personagem separado do jogo e o mesmo foi feito no filme sobre Zidane”, analisa ela. Ambos os documentários se apoiaram na tradição cinematográfica, desafiando os tempos em que o futebol possuía presença massiva nos canais de tevê, mesmo que separados por 36 anos de realização. A cobertura do esporte, antes imbuída de uma linguagem experimental com forte ênfase no emocional dos jogadores e das torcidas, foi obliterada pelo padrão asséptico e objetivo da linguagem jornalístico-televisiva, segundo a pesquisadora.

Foi pensando nisso que o diretor de fotografia paulistano Gustavo Pellizzon, quando ainda trabalhava como fotojornalista, em 2009, resolveu criar o vídeo Flamengo (2009). Pellizzon escolheu a final do Campeonato Brasileiro para testar uma das recém-lançadas câmeras fotográficas que permitiam filmar em alta definição. “O vídeo é resultado dessa tecnologia, em que pela primeira vez uma câmera portátil me possibilitou filmar com qualidade de dentro da torcida, sem a presença de uma equipe. Lembrei-me do Canal 100 e o modo como a cobertura do futebol era feita, quando o público também tinha um papel importante dentro dos filmes”, recorda Pellizzon.

O resultado é um filme experimental, cuja primeira plataforma de circulação foi a internet, obtendo mais de 100 mil acessos em seu segundo dia na rede. A obra mescla imagens fotográficas às de vídeo, focando torcedores que vão à loucura no jogo em que o Flamengo se sagrou hexacampeão brasileiro. De dentro da torcida, o fotógrafo capturou momentos emocionantes, como a comemoração do atacante Adriano diante da taça, mas também a celebração de casais, famílias e pessoas de diferentes idades e classes sociais. “Hoje, o papel do fotógrafo é o de contar histórias. Eu queria fugir da estética televisiva que é perpetrada atualmente, a qual, apesar de evidenciar os muitos detalhes de uma partida, diferentemente de antigamente, não mostra o ponto de vista da arquibancada, onde, muitas vezes, estão também as grandes imagens do futebol. A televisão mostra o torcedor muito de longe”, desabafa Pellizzon, que já mostrou seu vídeo em diferentes contextos, incluindo exposições de arte.

Espetacularização

https://www.youtube.com/watch?v=Opzvc2nEgpM

O artista argentino Runo Lagomarsino também questiona, em sua videoinstalação Chile vs. URSS, 1973 (2008), a “espetacularização” do futebol pela televisão. Longe de demonizar o alcance que o meio atingiu ao longo do século, questiona o papel sociopolítico que o esporte carrega diante de sua midiatização. O artista conseguiu com um canal de televisão do Chile o trecho de apenas 30 segundos no qual a seleção do país marca um gol, sem ter o adversário em campo, em uma das partidas mais breves da história. No vídeo, apenas um chute contra o gol destituído de goleiro é repetido à exaustão.

Pinochet acabara de tomar o poder e o estádio onde acontecia a partida pelas eliminatórias para a Copa de 1974, o Estádio Nacional, havia sido usado como campo de tortura pelas forças da ditadura chilena, e por isso a antiga União Soviética negou-se a jogar a partida ali. “Estou interessado em ver esse lado político da relação entre o futebol e a mídia, como pano de fundo para a história da América Latina. Qual é o sentido de transmitir uma partida de futebol na qual se joga contra ninguém? Por mais que a URSS não estivesse presente, ela estava e a transmissão do jogo mostra isso”, explica Lagomarsino, cuja obra foi exibida na exposição Fútbol: Arte y Pasión, em Monterrey, México, ao lado de filmes como os de Hellmuth Costard, Philippe Parreno e Douglas Gordon.

*Publicado originalmente na edição impressa #11.