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Postado em 14/04/2014 - 5:41
Leve como papel, maleável como o corpo
Paula Alzugaray

Tiragem Limitada, exposição inaugural da ArtEEdições Galeria, apresenta obras de nove artistas, em que a qualidade democrática da gravura e do papel se expande para esculturas e instalações

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Legenda: Department of Water and Power (Los Angeles) (2004), portfólio de quatro silkscreens de Sarah Morris (foto: Cortesia da artista)

Tiragem Limitada elucida uma nova ordem relacional entre as mídias contemporâneas. Além de obras impressas em metal e litogravura, a exposição traz edições em escultura, instalação e objetos, mostrando que a qualidade múltipla está longe de ser uma condição limitada às técnicas de impressão e reprodução, como a gravura, o print, a fotografia, o vídeo e as chamadas imagens técnicas. Compreendem-se, nos trabalhos de nove artistas reunidos nesta exposição com organização de Claudia Marchetti, as maneiras com que a gravura “exporta” para as outras mídias a sua qualidade democrática.

Realizada há exatos dez anos, com edições em papel de artistas contemporâneos britânicos, a exposição Paper Democracy havia atraído atenção para a gravura como meio democrático de circulação da arte. Em texto de apresentação, o crítico Suhail Malik associava a gravura à prática do jornalismo. Em sua disponibilidade material e econômica, facilitadora da distribuição e da multiplicação da opinião pública, o jornal seria o precursor do que viria a ser a democracia moderna, na forma como a conhecemos. O papel, suporte material do jornal, seria o elemento determinante “para a vasta proliferação de um espaço político versátil e militante”, segundo Malik.

Na exposição Tiragem Limitada, que inaugura a Arteedições Galeria, em São Paulo, o conceito da democracia do papel expande-se para as técnicas ditas “tradicionais”, que um dia primaram e zelaram pela singularidade da obra de arte. A leveza e a maleabilidade da matéria papel, que há mais de três séculos se oferece como suporte para a difusão de ideias, críticas, reflexões e crônicas da vida social e política, hoje se estende a matérias mais densas. Como o bronze e o concreto, que compõem a obra de Adriano Costa especialmente produzida para a mostra. Material frequentemente utilizado pelo artista, o bronze é em geral posicionado no chão, numa atitude de quebra de hierarquias. Na instalação O Jogo dos 7 Bobos (2014), as peças são posicionadas sobre tijolos de concreto.

A textura, o peso, a longevidade e a mítica carregada pelo bronze ao longo de toda a história da arte são qualidades que interessam ao artista. Mas, apesar de sua indiscutível nobreza, essa matéria estabelece, na obra de Adriano Costa, uma relação horizontal com o concreto, a madeira ou o pano de chão. Esses tensionamentos entre peso e leveza, longevidade e efemeridade, são particularmente sugestivos no trabalho gráfico do escultor Richard Serra. Célebre por obras de escala monumental e penetrável, em geral realizadas em ferro, Serra integra a exposição com quatro gravuras em metal que revelam como o pensamento escultórico se comporta no suporte maleável do papel.

Produzidos dentro do espectro da gravura tradicional, ou como edições escultóricas, os trabalhos apresentados em Tiragem Limitada compartilham de uma mesma intenção de colocar o meio gráfico em posição limítrofe em relação a outros campos da arte ou da vida. As litogravuras de Cy Twombly dialogam com a documentação científica. Em composições que articulam a pictografia (a imagem bruta, antes de se tornar signo e representação) e o texto enciclopédico, a série Natural History Part I: Mushrooms (1974) encadeia uma série de referências, da antiguidade à arte contemporânea. Composta de dez gravuras, interferidas individualmente com colagens e traços em crayon, a série é um modelo espetacular do ideal da “tiragem limitada”, já que possui apenas 17 exemplares, um deles pertencente à coleção da Tate, em Londres.

Jake e Dinos Chapman dialogam a tradição editorial e articulam um pensamento crítico em relação ao próprio meio gráfico. A série Bedtime Tales for Sleepless Nights (2013) é uma tiragem recente de 35 gravuras em metal das imagens que ilustram o livro de mesmo título, lançado pela Fuel e a White Cube Gallery em 2012. Em sua alegoria crítica da moral vitoriana, os irmãos Chapman mais uma vez evocam o álbum gráfico Desastres da Guerra, de Goya – que foi adquirido por eles em 2003 e que teve cada uma de suas 80 gravuras manipuladas com pinturas. No texto que acompanha a última prancha do álbum de gravuras, eles citam Deleuze e Guattari, em negação a Goya, terminando seus contos de horror com o statement: “Lembrem-se, pequenos. O inconsciente tem seus horrores. Mas eles não são antropomórficos. Não é o sono da razão que engendra monstros, mas a racionalidade vigilante e insone”. A qualidade versátil do papel projeta-se também entre as outras obras da exposição. Safety Last (2011), de Catherine Yass, dialoga com o cinema ao se apropriar de fotogramas de um clássico do cinema mudo; Rachel Whiteread faz esculturas modelando com gesso objetos da vida doméstica; e Sarah Morris, que, desde meados dos anos 1990, realiza pinturas, filmes e gravuras abstratas sobre o que ela descreve como “tipologias urbanas, sociais e burocráticas” baseadas em cidades do mundo, apresenta Department of Water and Power (Los Angeles) (2004), portfólio de quatro silk-screens.

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Legenda: Daggering (2013), de Eddie Peake, é uma edição de 75 lenços pintados individualmente com spray. Usado como acessório, faz do corpo humano um suporte da gravura. (foto: Ben Westoby / Cortesia White Cube)

O mais jovem artista da exposição, Eddie Peake costura conceitos da cultura de massa em uma peça que é tanto obra artística quanto acessório. Daggering (2013), edição de 75 lenços pintados individualmente com spray, foi concebida para ser usada. Portanto, instaura o corpo como suporte da gravura. O corpo humano e a vida doméstica são também territórios de exploração de Mona Hatoum, presente nesta exposição com Rubber Mat (1996). O objeto, um múltiplo de silicone que está no departamento de prints da coleção do MoMA-NY, tem a forma de um tapete estampado com um tubo intestinal. A tradição da escultura minimalista, os carpetes de cultos muçulmanos, a fragilidade de um corpo jogado no chão, o mal-estar de uma noite insone, a matéria prosaica da vida. O encadeamento de imagens liberadas pela obra da artista libanesa lhe confere a condição de escritura. Assim como o texto riscado no carpete de entranhas de Hatoum, cada uma das obras em exposição é portadora de um discurso sobre o nosso tempo, a ser multiplicado e compartilhado entre vários leitores.

A seção Vernissage é um projeto realizado em parceria com galerias de arte, que prevê a publicação de um texto crítico sobre a obra de um artista que estará em exposição durante os meses de circulação da edição.

*Publicada originalmente na edição 17