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Postado em 19/03/2013 - 8:13
Manjares dos deuses
Carlos Alberto Dória

Trufas, ostras, abacaxis, mangas, bananas, cajus, umbus, e tudo o mais que veio ao mundo sem depender do trabalho impreciso do cozinhar, devem ser comidos de joelhos

Zacharias_wagner_-_cajus

Legenda: Ilustração: Zacharias Wagener, de 1641: Cajus, do Thier Buch – Livro dos Animais.

No paraíso só se come cru. Nada de suor no rosto, de trabalhos plasmados em preparações culinárias para guardar, comer depois. Comida de homems é chamada de avati. Só aqueles expulsos do paraíso tentam reconquistar seus sabores, cozinhando incessantemente. No princípio, antes de nos tornarmos bípedes, era só cheirar as coisas antes de comê-las. E os animais, na busca do cio, toparam com as trufas. Cavoucando com as mãos, patas, ou o focinho, chegavam a essa maravilha. Porcos, cães e hominídeos procuravam, sob a terra, o cio da terra. Depois das chuvas de outono, o cheiro sexual da terra. Depois, com a postura bípede, os cheiros mais íntimos ficaram mais distantes; mas, ainda hoje, porcos e cães auxiliam o homem a encontrar as trufas. Um cheiro tão profundo, tão essencial, que milhares de anos de convivência pouco alteraram essa relação sensitiva. Afinal, a melhor forma moderna de se comer trufas é com ovo frito. Existe, na cozinha, algo mais evocativo do estado primitivo? O próprio ovo é a galinha que ainda não cozinhamos.

Por conhecerem apenas o cru, escarafuncharam o mar. Maravilhas de corais, de crustáceos e conchas. E toparam com a ostra. Coisa crua, lisa, gosmenta, que parece um abismo aberto à mesa para as pessoas que entendem a cultura como uma interferência que nos liberta do mundo natural. Pois mergulhar nesse abismo, comungar o cru, o frio, a noite das profundezas, era uma maravilha do paraíso. Até hoje há resquícios disso: apenas uma gota de limão para ver o animal se contorcer, como se os últimos fios de vida lhe escapassem para pode
rem ser comidos em paz. Na paz dos mortos. Sob o sol outra crueza: o mel. No princípio, as abelhas não tinham ferrão, pois nada temiam. E depositavam o mel em qualquer canto. Depois, armaram-se e desenvolveram favos hexagonais.

Hoje, “a colmeia da abelha é absolutamente perfeita no que se refere a economizar trabalho e cera”, observou o homem que primeiro entendeu que o paraíso é efêmero. Outras, mais primitivas, aferradas ao sem-ferrão, ficaram pelo caminho. E, em protesto contra a modernidade e essa racionalidade odiosa das abelhas domésticas, continuam a dar pouco mel. Mas os mais ricos em aromas e sabores. Méis (ou meles) do paraíso… E por falar em mel, no paraíso há uma grande floresta de mangas, com mais de 70 variedades. Isso porque todos ali, sem terem de gastar tempo a cozinhar, saem todas as manhãs para chupar mangas e cada um gosta de uma variedade. Mas o bom da manga não é só o gosto, ou os 70 gostos, mas a lambuzeira, a melança que mistura homens e frutas. Mel misturado à fruta, fruta misturada aos homens, bem entendido.

E foram assim, aos poucos, firmando-se os manjares dos deuses e dos homens, antes que se separassem, por conta de algum fatal episódio que muito ofendeu os deuses, que se reservaram o domínio das coisas cruas, fáceis, diretamente gostosas, condenando os homens à imprecisão dos cozimentos que nos conduzem ao bom, ao belo ou simplesmente ao desastre, obrigando a tudo fazer de novo, a recomeçar. Avati, comida de homens.

Trufas, ostras, abacaxis, mangas, bananas, cajus, umbus, e tudo o mais que veio ao mundo sem depender do trabalho impreciso do cozinhar, constituem manjar de deuses. A natureza que come a si mesma, a autofagia no quase infinito processo de se suprimir produzindo o outro – assim é no paraíso. Tudo imediatamente disposto para, da mão para a boca, tornar-se êxtase. Basta prestarmos atenção ao que comemos para perceber que nada acrescentamos à roda do fogo, a não ser angústia, incerteza e uma vaga consciência de perpétua danação. Não por acaso estamos dispostos a conceder a quem cozinha bem o papel de sacerdote.

Para comer em êxtase

Cajus

Caju

Fatie um caju bem maduro em lâminas de grossura adequada. Disponha sobre cada fatia um tanto de sal e pimenta-do-reino moída. Mastigue vagarosamente cada uma, intercalando goles de cachaça para limpar a boca e recomeçar.

Ostra

Ostra

Pegue uma ostra. Abra-a. Olhe bem em seus olhos, como se olhos tivesse. Pingue uma gota de limão, como se colírio fosse. Conforme-se com o fato de que ela o olhará por dentro quando você mergulhar na escuridão do comê-la.

Manga

Manga

Tome uma manga bem madura, das mais perfumadas, amasse bem com as mãos, pacientemente. Quando estiver bem mole dentro da casca, dê uma pequena mordida no biquinho e sorva aquele caldo de manga como se leite fosse direto da fonte. Os mais gulosos, quando o leite seca, costumam tirar a casca e chupar o caroço. Não é necessário. Apenas repita a operação, se preferir, com outra variedade, porque o que não falta no paraíso são variedades de manga. Não se preocupe com o lambuzar-se, pois ao estar satisfeito recomenda-se um banho de rio.

* Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia, pós-doutorando na Unicamp e professor universitário de Introdução à Sociologia da Alimentação. Escreve na revista eletrônica Trópico  e no blog E-Boca Livre

*Publicado originalmente na edição impressa #10.