Augusto de Campos fez da poesia uma arte de pactos com a performance, a música, as artes visuais, a arquitetura
Intervenção do estúdio seLeCt sobre foto de Juan Esteves
O resultado é uma arte intermídia praticada, segundo o poeta, por “indisciplinados interdisciplinares”
Poetas concretos sempre buscaram uma arte ligada ao avanço tecnológico e, em 60 anos de atividade poética, Augusto de Campos fez da poesia uma arte do futuro. Do cartão-postal a projeções em espaços expositivos, sua poesia flanou por toda a sorte de mídia: luminosos, videotexto, holografia, néon, laser, computação gráfica, clip-poemas, cd-livro, animação digital.
Entre todos esses ambientes, muitos instáveis e perenes, ganhou impressão em livros eternos, entre eles, Viva Vaia (1970), Despoesia (1994) e Poètemoins (2011), antologia bilíngue lançada em novembro passado em Bruxelas. Hoje, aos 80 anos e disponibilizado no Youtube e no UbuWeb, Augusto de Campos diz que as tecnologias digitais favorecem e inspiram novas estratégias para atingir “um estado poético impactante, uma ‘iluminação’”. Em entrevista a seLecT, ele reflete sobre todas as formas de migração do mundo verbal – do papel para tantos outros espaços.
Fale-nos sobre o pacto entre a sua poesia e a performance.
A poesia concreta, desde o início, se propôs “verbivocovisual”, ou seja, queria pôr em relevo a materialidade da palavra em todas as suas dimensões – semântica, sonora e visual. Nisso se distinguia de outros experimentos que se fixavam ora no sonorismo, ora no grafismo, desprezando o significado das palavras. Na poesia concreta, o significado permanece, embora considerado com autonomia poética, desamarrado de suas convenções normativas e estruturado com distanciamento da armadura lógico-discursiva contratual.
A questão da performance concentrou-se inicialmente no problema de encontrar novas estratégias para produzir vocalmente os poemas em função de sua organização visual. Já em 1955, no Teatro de Arena, dois espetáculos produzidos pelo grupo Ars Nova, sob a direção musical de Diogo Pacheco, incluíam poemas da série colorida Poetamenos, sob o título Poesia e Música Concreta, com vocábulos, sílabas, fonemas distribuídos entre quatro vozes e projeção em diapositivos. O poema TENSÃO tematiza tanto a visualidade quanto a sonoridade molecular da sua estrutura, entre som e silêncio. BEBA COCA-COLA (1957), de Décio Pignatari, além de desconstruir a frase publicitária a partir de cruzamentos de palavras e sílabas, logo inspirou o moteto que celebrizou o músico Gilberto Mendes, num coral de vozes “bebacocacólicas” – um antianúncio crítico e político sem discurso e sem retoricidades.
Fale sobre os pactos entre a sua poesia e o hipertexto (nos poemas Poetamenos, de 1953, que se oferecem para ser percorridos pelos olhos em direções entrecruzadas, sugerindo uma leitura em rede).
Eu pensava em luminosos ou cineletras, quando idealizei essa série de poemas. Mas, para mim, o primeiro poema que sugere uma topologia hipertextual é UN COUP DE DÉS (Um Lance de Dados), de 1897, de Mallarmé, com suas “subdivisões prismáticas da ideia”. Lembrar que o poema foi construído na iminência do século 20 – na verdade, entre dois séculos –, considerando-se que ele só apareceu de acordo com as prescrições do poeta em 1914, quando a NRF (La Nouvelle Revue Française) o publicou completo, com a paginação desdobrada atravessando a prega central, em meio à eclosão das vanguardas históricas (futuristas, cubistas, Apollinaire). Considero-me, nesse sentido, um seguidor do poeta…
Luxo (1965) foi composto como um poema engajado a partir de um anúncio de apartamentos caros, que utilizava uma tipologia rococó-kitsch
Sobre o pacto com a música (Pulsar, com Caetano Veloso, 1979 + Poesia é risco, com Cid Campos, 1994, + outros).
Quando a poesia concreta surgiu, apesar da evidência sonora de poemas como TENSÃO, ela impressionou mais pela dimensão visual. No entanto, os músicos contemporâneos, ligados a práticas experimentais, logo entenderam o desafio sonoro que os poemas propunham. Além de BEBA COCA-COLA, belas transposições como NASCEMORRE (de Haroldo) e VAIVÉM, de José Lino Grünewald, compostas pelo mesmo Gilberto Mendes, ou MOVIMENTO, de Pignatari, por Willy Correa de Oliveira, responderam às novas estruturas poéticas em composições capazes de corresponder em linguagem musical a essas propostas. Mais adiante, Caetano, com sua inata musicalidade, criou admiráveis construções musicais para assimilar poemas complexos como DIAS DIAS DIAS, da série POETAMENOS, e PULSAR, rompendo as limitações da chamada “música popular”.
Mais adiante, vários outros compositores, da música erudita moderna ou da música popular, se animaram a fazê-lo. Mas o diálogo musical com Cid foi, para mim, o mais produtivo, gerando o CD POESIA É RISCO, agora reeditado, e ainda participações poéticas em discos subsequentes como NO LAGO DO OLHO, OUVINDO OSWALD, PROFETAS FALA DA PALAVRA, CRIANÇAS CRIONÇAS, nos quais o projeto da poesia “verbivocovisual” pôde encontrar uma expansão extraordinária.
Era algo que já estava embutido nas propostas iniciais da poesia concreta, mas que só pôde ter um desenvolvimento mais pontual com a chegada dos estúdios pessoais de computação, ao mesmo tempo profissionais e livres de imposições comerciais, o que ocorreu entre nós a partir da década de 90. Daí para os espetáculos multimídia, como o próprio POESIA É RISCO, que abrangeu a videoarte com a participação de Walter Silveira na edição de um tríptico de vídeo e diapositivos. Foi então possível estabelecer um “triálogo” enriquecedor, que deu vida à propostas “verbivocovisuais”.
Sobre um possível pacto com a arquitetura (quando a poesia concreta se define como rejeição de estrutura orgânica em prol da racionalidade construtiva). Compor um poema é arquitetar?
Colocada dentro do quadro maior das artes visuais, a arquitetura moderna é talvez mais um impacto do que um pacto. A poesia lida com sensações profundas, com emotividades recônditas. A arquitetação do poema, mais que a sua arquitetura, funciona no sentido do domínio de técnicas verbais capazes de juntar os impulsos sensoriais e traduzi-los em palavras, numa composição verbal duradoura, que ultrapasse o mero jorro confuso-confessional de emoções e associações. “Matemática inspirada”, era como Pound definia a poesia. “Racionalidade do caos”, propôs Waldemar Cordeiro.
Por outro lado, há um gesto antimonu-mental na escolha de uma visualidade simples que, segundo Décio Pignatari, “poderia ser encontrada numa porta de tinturaria”?
As portas de tinturaria com suas fachadas geométricas, indiciais da profissão, eram muito admiradas pelos artistas concretos nos anos 50, quando ainda eram frequentes na paisagem urbana. Não sei se podemos falar em gesto antimonumental. Eu diria, antes, um gesto antirretórico, acintosamente minimalista. Quando compus o poema VIVA VAIA, eu o pensei como um “monumento à vaia” (com esse título foi publicado pela primeira vez na revista NAVILOUCA, em 1973).
Na exposição POESIA CONCRETA: O PROJETO VERBIVOCOVISUAL, no Instituto Tomie Ohtake, em 2007, ele foi projetado em grandes dimensões. Isso já havia acontecido com o poema CIDADECITYCITÉ, transcrito em letras murais de 50 metros na fachada de um prédio da Bienal por Julio Plaza, nos anos 80, e hoje pintado nas paredes da Biennale de Lyon.
Depois de todos esses pactos, o poema concreto ainda migra para outras poéticas – de contemporâneos como Regina Vater, que fez a série fotográfica LUXO LIXO (1973-76) inspirada em LUXO (1965); ou de gerações seguintes, como Lenora de Barros e Arnaldo Antunes.
LUXO foi composto, em 1965, como um poema engajado, a partir de um anúncio de apartamentos caros que utilizava uma tipologia rococó-kitsch. Depois de publicado o poema, os mesmos tipos reapareceram na fachada de uma empresa comercial, que vendia móveis usados, o LIXÃO. Regina, Lenora e Arnaldo são companheiros de viagem artística envolvidos com poéticas interdisciplinares que abrangem o verbal e o não verbal. É gratificante o fato de que artistas como eles dialoguem com o meu trabalho.
Sobre o pacto do poema concreto com o objeto. Os POEMÓBILES (1968-1974), parceria com Julio Plaza, estão entre os pioneiros da poesia levada ao objeto?
Os poemas-objetos e/ou objetos-poemas têm uma história longa, na qual entramos em algum ponto do caminho. Talvez possamos ser considerados pioneiros em nosso ambiente, e mesmo em termos internacionais, se consideramos que se trata de prática marginal, com poucos exemplos consistentes no domínio da poesia. Uma arte “intermídia”, mais praticada por indisciplinados interdisciplinares como Duchamp do que propriamente por poetas, em geral restritos aos livros ilustrados, onde não há uma relação estrutural entre texto e objeto. Mas há muitos precursores.
Ainda há pouco, visitando a casa-museu de Mallarmé, em Valvins, vi exposto um dos leques em que ele inscreveu o poema para a sua filha. Sem dúvida, uma antecipação da ideologia do poema-objeto. Em nosso caso, o poema-objeto ou objeto-poema foi uma decorrência direta das propostas da poesia concreta, que já previa a interlocução com outros suportes e veículos que não fossem o livro. A própria exposição nacional de arte concreta já inovara ao inserir poemas visuais entre quadros e esculturas. Nessa mostra, Décio Pignatari tinha um livro-objeto pendurado na parede – o seu poema SEMI DI ZUCCA. No que me diz respeito, o encontro com Plaza foi fundamental para dar corpo a esse tipo de projeto, que se distingue do livro-de-artista decorativo.
Você termina o livro “Poesia 1979-2009” com o poema TUDO ESTÁ DITO (1979). No entanto, ali começa outro capítulo. Fale-nos sobre o pacto com o futuro.
TUDO ESTÁ DITO foi a princípio bastante incompreendido. Como, depois, o poema PÓS-TUDO. “Contemporâneos não sabem ler”, dizia Mallarmé. É verdade que eram poemas provocativos. Mas TUDO ESTÁ DITO era respondido por TUDO É INFINITO, no próprio texto. E PÓS-TUDO terminava com MUDO (de ficar mudo, mas também de mudar). Fechavam e abriam. São momentos de autorreflexão, em que tento questionar-me e pôr em questão os procedimentos da arte e da poesia, para colocar o artista contra a parede, que é o seu melhor lugar. “Consciência da consciência”, diriam Mallarmé, Valéry e Fernando Pessoa. Quanto ao futuro, há sempre alguma luz no fundo do túnel. Agora, quem estiver contente com o que faz, que durma eternamente nos seus supostos louros, sem “nostalgia do futuro”.
Sente saudade de alguma tecnologia que usou antes de migrar para o computador?
Sempre que amigos meus, artistas mais jovens, versados em novas tecnologias, como Julio Plaza ou Wagner Garcia, me chamaram para projetos envolvendo novos processos informativos, me senti provocado e animado. E os trabalhos que fiz com materiais plásticos, videotexto, holografia, laser foram sempre bem-vindos. Deixam, sim, alguma saudade. O sonho holográfico, por exemplo, acabou quando Moyses Baumstein faleceu prematuramente. E justo quando ele já estava produzindo hologramas de projeção, de 1 x 1 metro. Por sinal, alguns dos nossos hologramas estão em museus da Europa e dos Estados Unidos. No Brasil, mal conseguimos imprimir um cartaz-catálogo para uma das nossas exposições dos anos 80, TRILUZ e IDEHOLOGIA.
Hoje, o computador já me proporciona, basicamente, tudo o que preciso. Inclusive para os projetos de livro, de cuja produção gráfica gosto de participar, desde as capas. Comecei transpondo alguns poemas concretos para a linguagem da animação digital. Por fim, passei a pensar meus poemas a partir da tecnologia computadorizada. Mas não me preocupo em fazer poesia tecnológica, uso a tecnologia para fazer poesia, que é tudo que sei fazer. Saudades mesmo só da juventude incipiente, excessiva e produtiva que os 80 distópicos não trazem mais. A poesia concreta já não vai salvar o mundo. Mas suponho que estarei partindo em breve para outros.
*Publicado originalmente na edição impressa #3