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Postado em 02/03/2015 - 1:26
O maior desafio da pintura
Paula Alzugaray

Beatriz Milhazes, a artista viva brasileira mais valorizada de todos os tempos, afirma que a pintura estará sempre atrelada à tela

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Legenda: Beatriz Milhazes dá entrevista ao programa Metrópolis (TV Cultura) diante de seu quadro O Moreno (2005), da Coleção Airton Queiroz (fotos Paula Alzugaray)

Uma seleção de 50 obras, entre pinturas, gravuras, colagens e materiais de processo, compõe a mostra Beatriz Milhazes – Coleção de Motivos, inaugurada na quinta-feira, 25 de fevereiro, no Espaço Cultural Unifor, Fortaleza. A curadoria de Luiza Interlenghi agrupou as obras segundo motivos e padrões repetitivos, facilitando o entendimento e leitura da obra de Milhazes como um processo de “serialização manual”. Como sustenta a curadora, é na repetição de motivos como rosas, cajus, espirais ou listras que a artista estabelece a convergência entre o caráter artesanal e a imagem industrial, reproduzida e veiculada na cultura de massa.
Entre os diferenciais e pontos altos da exposição está justamente uma montagem que favorece a visualização dos processos de criação da artista – mostrando seus desenhos em plástico que viram decalques a serem aplicados sobre a tela, além de bibliografia de pintores que são referencia e a exibição de dois documentários.
Nessa conversa, realizada com seLecT antes da abertura da exposição, Beatriz Milhazes expõe seu pensamento sobre a atualidade do fazer pictórico. O seu e o das novas gerações.

Paula Alzugaray – Qual o maior desafio da pintura contemporânea?

Beatriz Milhazes – Acho que posso falar a partir de minha observação dos artistas jovens, de 20 e poucos anos, que estão finalizando a graduação em pintura e que eu acompanho nos Visiting Programs das Universidades americanas, como o Art Institute de Chicago, que fiz no final de 2013. Acho que o grande desafio hoje é o foco na própria pintura. Parece simples, mas não é. O momento hoje convida todos, não só o artista, à dispersão. Você tem muitas ofertas, a começar pela internet, que tem todas as vantagens, desvantagens e armadilhas pra você cair. A pintura é um meio que requer concentração, foco, solidão. Você não vai conseguir resolver problemas pictóricos sem estar dentro do ateliê tentando resolvê-los. Pra um jovem hoje, num mundo em que a arte contemporânea abriu um leque tão ilimitado – o que agora já está virando um problema – é difícil fazer essa opção por ficar concentrado dentro do ateliê pra tentar descobrir alguma coisa…

PA – Qual o peso da história da arte para esse jovem artista?

BM – Toda história da arte ainda é centrada na pintura, então você tem ainda toda uma história antes de você. Nós brasileiros somos sempre mais flexíveis e abertos, temos uma leitura da nossa história com muitas lacunas, ela não foi tão estratificada, ela não exerce um peso sobre a nossa criação. Mas esse não é caso da Europa ou dos EUA, onde a história é um peso para os artistas. E a pintura carrega três vezes isso, no sentido de que nela está toda a história e a cultura ocidental.

PA – Qual sua relação com a arte e com a pintura moderna? Como pautam teu trabalho?

BM – Essa relação é muito forte e começou quando eu ainda estava no Parque Lage (Escola de Artes Visuais do Parque Lage). Antes, minha mãe era professora de história da arte na UERJ, eu tive essa formação histórica em casa. Mesmo que em minha geração não tivéssemos muitas opções culturais, porque crescemos durante a ditadura, sempre fomos a museus. Então a partir da família tive essa informação da existência do modernismo. Porque na escola, aqui no Brasil, você não tem. Então, no Parque Lage eu quis conciliar esses interesses pessoais, no mundo, na vida, com a pintura, porque eu sempre quis ser pintora. O espaço branco da tela foi sempre um espaço de liberdade pra mim. Encontrei esses mesmos interesses nos pintores do modernismo, como a Tarsila. Ela começou a pintar a partir de estudos de Leger. Eu pintava estudando Matisse e o modernismo europeu. Minhas primeiras ideias de pintura vieram da Europa, não do Brasil. Mas quando instalei meu ateliê no Jardim Botânico, senti que a conta não fechava. Eu estava num contexto completamente outro, que não me deixava pensar daquela maneira. Aí começou o meu dilema. Então tive como base esse triângulo: Tarsila, Matisse e Mondrian. Mas se há algum movimento com que me identifico é o modernismo, tanto o modernismo brasileiro quanto o europeu, por sua relação com a vida.

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Legenda: Detalhe da sala de que expõe os processos criativos e de montagem de Milhazes

PA – Duas dinâmicas recorrentes do teu trabalho, como é bem apontado pela curadora Luiza Interlenghi, são a apropriação e a criação. Você associa a apropriação a um gesto moderno ou contemporâneo?

BM – De 2012 para cá estou estudando a arte abstrata, artistas modernos e contemporâneos. Sonia Delaunay, Iole Saldanha, Bridget Hilley, Waldemar Cordeiro, Guignard. São artistas de que eu me aproprio de alguma imagem que foi um exemplo de sua abstração. São motivos. Acabam virando motivos que são usados em algum momento na minha pintura. Isso é um gesto contemporâneo.

PA – Filtrar e selecionar (entre as milhões de ofertas de que você falava no início) é então um gesto contemporâneo?

BM – Exatamente. Estou sempre criando motivos novos, mas eles com certeza vêm de uma leitura do mundo que existe. É que o mundo da pintura é cor, forma e composição. E acabou. E pincel e tinta. Esse é o universo da pintura, sempre. E o raciocínio também é sempre bidimensional. Isso é o fascinante da pintura.

PA – Mas a visão da pintura como necessariamente bidimensional é uma postura moderna.

BM – Com certeza. Essa é uma discussão antiga. Nos EUA, Frank Stella é um artista que nos anos 1970 e 80 estava fazendo essa relação entre o bi e o tri. Mas acho que o raciocínio desses trabalhos, que foram a minha origem, partem do bidimensional e voltam para o bi. Hoje estou mais radical em relação a isso, sustento que a pintura é essa superfície mesmo. Todas essas outras coisas não são pintura. Elas discutem a pintura. Acho que a Leda Catunda é um ótimo exemplo. Ela trabalha a superfície, cria objetos, relevos e está discutindo questões contemporâneas da pintura, mas não acho que ela esteja fazendo pintura. Acho que a pintura está sempre atrelada à tela.

Paula Alzugaray viajou a Fortaleza a convite do Centro Cultural Unifor