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Postado em 26/08/2011 - 12:41
Provocações nas margens do real: crise do real nas artes

A crise da representação do real na história da arte é parte de uma crise maior: a da própria noção de realidade

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Instalação Perzeptionema de Roberto Cabot de 2006 , desconstrói a noção de perspetiva. Foto: Roberto Cabot

Nina Gazire

É na pintura que a crise da representação do real nas artes provocada pelo digital aparece mais diretamente. Exemplo são as produções mais recentes dos artistas Regina Parra e Roberto Cabot. Ao contrário das obras de Reisewitz, Braga e Matheus – que desconstroem a paisagem e a anatomia da natureza –, Parra traduz para a pintura, meio tradicional de documentação de paisagens e retratos, as imagens turvas e desfocadas das câmeras de circuitos de vigilância.

Antes de trabalhar com as imagens dessas câmeras, Parra apropriava-se de recortes de fotos publicadas em jornais, revistas e internet. Até que viu frames de circuitos de vigilância. “O frame do CCTV funciona como testemunha eletrônica do acontecido”, explica Parra. A sigla CCTV significa Closed Circuit TV, em português Câmera de Circuito Fechado de TV. São de acesso proibido, a menos que algo aconteça (um crime, por exemplo) e motive sua divulgação. O uso dessas imagens deu origem à série de pinturas que a artista denominou Rumor, de 2009. “O que me interessou foi a possibilidade de utilizar imagens sem nenhuma resolução ou definição,
uma imagem efêmera, descartável.

Eu me interessei por deslocar essa imagem precária para o campo da pintura a óleo, que é tida como a mais nobre e tradicional das linguagens”, continua. O gesto de Parra resume a crise da representação do real não só na pintura, como na fotografia e em outras mídias.A realidade foi investigada em todos os seus recantos pelos dispositivos digitais: câmeras de vigilância, telescópios, edoscópios, câmeras fotográficas e microscópios eletrônicos. Restou à pintura as imagens fugidias transpostas para a paleta de tons pastel das pinturas de Parra. De certa forma, são antipaisagens.

A artista afirma nunca ter trabalhado com uma imagem real: “Procuro sempre trabalhar com imagens mediadas, para incorporar os rastros das mediações na pintura. Tento evidenciar o percurso daquela imagem, reproduzindo os ruídos, a falta de profundidade ou foco. Vejo essas sujeiras da imagem como rastros, cicatrizes que comprovam a distância do real”. A crise da representação da realidade na história da arte é apenas parte de uma crise maior: a própria noção de realidade. Há muito a criação e a mediação da realidade por tecnologias digitais fazem supor que elas estariam criando uma realidade paralela, virtual.

Não só a realidade imersiva de ambientes de jogos eletrônicos ou simuladores, mas aquela configurada pela conexão constante no Twitter, no BlackBerry, no Facebook. Até que ponto essas ferramentas trazem algo diverso daquilo que chamamos de real? O próprio pensamento já é uma mediação e a noção da arte como meio para representar o real há muito perdeu a validade. Aliás, não existem imagens que não sejam mediadas. Ainda em torno do paradoxo da representação do real, Roberto Cabot brinca com a estrutura das grades, redes e coordenadas cartesianas que determinam a perspectiva.

Na pintura A Máquina Impossível, de 2004, retrata uma malha distorcida, ondulada. “A grade perspéctica é usada desde o Renascimento para determinar proporções e estruturar uma composição na pintura ou no desenho”, lembra ele. “Hoje, a grade é aquilo que estrutura as redes eletrônicas. Uma página na internet não é nada mais do que uma grade, uma malha de linhas e pontos”, comenta. Com a multiplicidade de linguagens e suportes artísticos, a grade deixou de ser a ferramenta principal da representação. O abstracionismo cancelou a perspectiva e espalhou os elementos da composição em outras espacialidades.

A grade também já não é o único modo de organizar dados do mundo digital. Hoje há dados virtuais na Nuvem, ou seja, em estruturas não hierarquizadas, tão nebulosas e multiformes quanto a metáfora escolhida para designá-las. Feita de modelos arbitrários e mutáveis, a arte atual é como as malhas distorcidas e frágeis de Cabot: sinalizam que, cada vez mais, vivenciamos diversas realidades, que se amoldam e flexionam conforme vemos e pensamos o mundo.

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