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Postado em 26/08/2011 - 12:05
Provocações nas margens do real – O digital nas artes

A entrada da lógica digital no campo da arte parece acelerar e potencializar dúvidas sobre as noções de real/analógico e real/virtual.

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Rodrigo Matheus brinca com a história da pintura de paisagens na instalação travel express. Foto: Eduardo Ortega

Nina Gazire

 Se a fotografia libertou a pintura da representação do real, no fim do século 19, dando espaço para que outras artes se tornassem livres para expressões mais subjetivas, a tecnologia digital do século 21 parece querer usar a realidade para chegar ao simulacro dela, libertar o próprio real de si mesmo, pela hiper-realidade e excesso de perfeição da imagem. Nada mais adequado aos tempos céticos em que vivemos.O artista pernambucano Rodrigo Braga parece levar essa questão às últimas consequências, em uma série denominada Fantasia da Compensação. Assim como Reisewitz, Braga também é fotógrafo e também aborda a relação entre o homem e o meio ambiente, mas está longe de ter uma ideia romântica sobre a natureza. Filho de biólogos, Braga passou a infância acompanhando os pais em laboratórios e pesquisas de campo. Resolveu traduzir em linguagem artística as similaridades dos processos da arte e da ciência. Em Fantasia da Compensação, apresenta fotos de uma suposta cirurgia, na qual ele próprio teria recebido implante da face de um cão.

Fantasia da Compensação é a tentativa de Braga de se apropriar daquilo que ele diz faltar a si mesmo: a força e a braveza de um cão. Tudo começou em 2005, após ele ter conseguido, na Clínica Veterinária da Universidade Federal de Pernambuco, a cabeça de um rottweiler. O processo de criação da imagem envolveu muitas horas em que o artista ficou imóvel, em uma cadeira, para que professores da Escola de Belas Artes tirassem um molde de sua cabeça. A cirurgia em parte foi verdadeira. Médicos da Escola Veterinária fizeram os implantes das estruturas de tecidos moles da cara do cão no rosto da cabeça artificial moldada a partir da fisionomia de Braga.

Depois, o artista sentou-se na mesma cadeira, na posição do molde, para gerar a imagem de seu rosto, logo a seguir sobreposta digitalmente à imagem da cabeça modificada pela cirurgia veterinária. A imagem choca e, segundo seu autor, gera indignação em algumas pessoas. O resultado final é um homem híbrido, com focinho, orelhas e olhos de rottweiler. “Usei recursos digitais e manipulação de imagens para criar uma metáfora para o real. Eu queria uma metáfora para o outro, o animal”, comenta Braga. O autorretrato de Braga como rottweiler traz, além da incongruência zoológica, hiper-reais cicatrizes vermelhas da cirurgia recente. Cirurgia verdadeira em uma face falsa que, sobreposta à fisionomia verdadeira do artista, cria um híbrido pós-natural.

O pintor surrealista René Magritte já avisava, em 1928, à distinta clientela: a pintura representando um cachimbo não é um cachimbo, ou seja, não equivale ao cachimbo real. A idéia de representar o real nas artes já não é um território nítido, de bordas definidas. “Quero deixar o espectador flutuando entre o virtual e o palpável, quero colocá-lo em uma situação de dúvida, uma vez que manipulo sutilmente a imagem”, diz Braga. “Estou interessado não só no corpo, mas, principalmente, na construção de dúvidas”, completa ele.

O que é verdadeiro em um mundo onde a realidade, manipulada pelo meio digital, alcança resultados equivalentes ou melhores do que aqueles conseguidos pela tecnologia analógica ou pela observação direta do olho humano? Surge aí um segundo problema, segundo o qual a mediação da realidade (ou realidades) pelas tecnologias diria respeito ao artificial, não-real. O trabalho de Braga trata também de um mundo de próteses artificiais, de biotecnologia, do surgimento de outra natureza, híbrida, feita da mistura indissolúvel entre real e artificial. Há a mentalidade segundo a qual a natureza, que não sofreu nenhum tipo de interferência da técnica, seria o que existe de mais verdadeiro.

O terreno da manipulação, da tecnologia, da ação do homem transformando a natureza – o processo civilizatório, enfim – equivaleria ao mundo artificial. Esse não é um impasse apenas no campo das ciências e da filosofia, mas também das artes. Em passado recente, a arte-mídia ou as artes digitais eram relegadas a um segundo plano por trazerem esse caráter “artificial”, supostamente menos legítimo do que as artes tradicionais. Mas ambas são cultura e, portanto, artifício. O que Reisewitz e Braga têm em comum é que tanto as paisagens, aparentemente intocadas e analógicas, quanto o homem-cão, supostamente real, são construções arbitrárias, fruto de expressões autorais.

Nenhuma arte é natural, como já apontavam Magritte e seu cachimbo. Brincando com a questão magrittiana, o artista Rodrigo Matheus desenvolveu a instalação Travel Express, de 2008. O trabalho apresenta a foto de uma paisagem em um cavalete, com vasos, pedras e refletores de luz em volta. Matheus observa que natureza e paisagem são noções padronizadas pela prática artística. Para ele, a própria ideia de natureza é artificial. ““Esta obra parte do princípio de que tudo que é feito pelo mem é artificial. Gosto da ideia de relacioná-la com os museus de história natural, onde os objetos que compõem o cenário dos dioramas reiteram e conferem realismo a um suposto ambiente natural”, afirma.

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Introdução

A crise da representação nas artes