icon-plus
New World Summit, do artista Jonas Staal, consta no arquivo do site da Arte Útil e já teve oito edições. Iniciado em 2012, na 7a Bienal de Berlim, a obra consiste na organização de um parlamento extra-oficial para discussões entre aqueles que foram excluídos do jogo democrático (Foto: Lidia Rossner)
Postado em 14/05/2019 - 12:04
Reflexões sobre Arte Útil
O que pode ser mais gratificante do que ver sua ideia incorporada na vida cotidiana das pessoas?
Tania Bruguera

O impulso natural de um artista é tentar entender as coisas que o rodeiam e compartilhar com os demais as questões que formular e as respostas que encontrar. O sentido da Arte Útil é imaginar, criar, desenvolver e implementar algo que, produzido na prática artística, oferece às pessoas um resultado claramente benéfico. Isso é arte porque é a elaboração de uma proposta que ainda não existe no mundo real e porque é feito com a esperança e a crença de que algo pode ser feito melhor, mesmo quando as condições para que isso aconteça ainda não estejam lá. A arte é o espaço em que você se comporta como se existissem as condições necessárias para que ocorram as coisas que você quer que ocorram e como se todos estivessem de acordo com o que propomos, mesmo que ainda não seja assim: arte é viver o futuro no presente. Arte é também fazer crer, apesar de sabermos que nós talvez não tenhamos muito mais do que a crença em si. Arte é começar a praticar o futuro.

Arte Útil tem a ver com o entendimento de que a arte, somente como proposição, já não é suficiente. Arte Útil vai do estado da proposição ao da aplicação na realidade. Tem a ver com entender que propostas vindas da arte devem dar o próximo passo e ser aplicadas, devem deixar a esfera daquilo que é inalcançável, da impossibilidade desejada, para se tornar parte do que existe, da esfera do real e funcional: para ser uma utopia exequível. Enquanto a Arte Útil pode ser como um programa piloto ou beta, no qual participantes podem experienciar como é viver no mundo que está sendo proposto, ela deve ser apresentada como algo real. Deve ser mostrada/compartilhada com aqueles que podem fazê-la funcionar em um formato de longo prazo, quer dizer, as pessoas que se beneficiam da proposta e que podem levá-la a um estado de existência mais permanente. A arte feita como Arte Útil não tem uma obsolescência programada; ao contrário, é uma proposta que outros podem tomar e continuar sem a subsequente intervenção do artista. Artistas sugerem seu potencial de vida: alguns projetos são imaginados como curtos e específicos; em outros existe o desejo de uma repercussão mais longa na vida das pessoas, que a sociedade como um todo se aproprie. Arte Útil não tem nada a ver com consumo, mas com fazer algo acontecer.

Arte Útil está transformando afeto em eficácia. Para a Arte Útil, fracasso não é uma possibilidade. Se o projeto falha, ele não é Arte Útil. Artistas têm o desafio de encontrar formas para que suas propostas possam realmente funcionar; isso não é impossível de ser atingido. Então, os meios pelos quais arte é feita não dependem de um ideal caprichoso do artista, mas dos limites impostos pelo que pode ser deveras atingido e até onde se pode ultrapassar a realidade do que está sendo sonhado. Portanto, os limites de um projeto de Arte Útil são determinados pelo relacionamento com as pessoas para as quais ele é feito e as transformações das condições em que cada trabalho é realizado. O momento perfeito aparece quando o projeto já está em movimento, quando as pessoas para as quais ele foi feito o entendem, quando eles o desapropriam do artista e o tomam para si. Arte Útil intervém na vida das pessoas e é esperado que se torne parte dela.

Arte Útil não tem relação com a perspectiva que falsamente vê o bem em tudo; é mais sobre acreditar na possibilidade de crescimento das pessoas. Artistas fazendo arte social não são xamãs, mágicos, curandeiros, santos ou mamães. Eles estão mais próximos de professores, negociadores, do construtor de comportamento e estruturas sociais. Arte Útil funciona diretamente com/na realidade. Arte Útil tem uma sociedade diferente em mente.

Arte Útil é uma forma de praticar arte social. É um material (artístico) socialmente consistente que funciona como um ponto de entrada para o público. Com excessiva frequência ouvimos falar sobre as barreiras que existem entre o trabalho de arte e o público desinformado para quem o acesso ao trabalho é impossível. A utilidade da obra para o público é, do meu ponto de vista, a chave para resolver essa barreira de comunicação e interesse dos públicos não informados/não iniciados na arte contemporânea. É um deslocamento do uso de recursos como metáforas, alegorias etc. como entrada para entender a ideia do trabalho ao usar a utilidade como um sistema de interpretação da obra.

Se você trabalha com Arte Útil, o que pode ser mais gratificante do que ver sua ideia incorporada na vida cotidiana das pessoas? Ou no programa social de uma cidade? Ou em nuances do vocabulário desses indivíduos? Eu acredito que esse é o espaço natural para trabalhos de Arte Útil que alcançam um nível mais alto de popularidade e efetividade. Assim como imagens baseadas em artes visuais muitas vezes vivem como parte de cortinas de chuveiro, xícaras de chá ou camisetas, para arte compromissada socialmente sua distribuição popular deveria ser a própria sociedade, as instituições civis, o comportamento cívico, a vida diária das pessoas. Arte Útil deve ser parte do cotidiano; deve ser um exercício diário de criatividade cotidiana.

Tradução de Luana Fortes do texto original publicado no livro Arte Actual: Lecturas Para Un Espectador Inquieto, de novembro de 2012.

Tags  
arte útil   ensaio   tania bruguera