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Sofia Borges, Felipe Bittencourt, Rafael Carneiro, Flávia Junqueira e André Feliciano fotografados por Bob Wolfenson
Postado em 20/03/2012 - 5:05
Retrato do artista quando (muito) jovem
Nascidos entre 1984 e 1987, cinco artistas relatam seus caminhos para as artes visuais e refletem sobre o atual contexto, em que “jovem artista” virou commodity

Eles têm obras de gente grande, mas ingressaram muito cedo no circuito da arte e construíram uma trajetória artística com apenas vinte e poucos anos. Sofia Borges, 27, Felipe Bittencourt, 24, Rafael Carneiro, 26, Flávia Junqueira, 26, e André Feliciano, 27, são jovens precoces que estão inscrevendo seu pensamento e sua atitude na conversa da arte contemporânea brasileira.

André Feliciano, o mais precoce entre os precoces, que formulou seu primeiro (de muitos) manifesto sobre arte ainda no colegial, atende hoje pelo nome Jardineiro de Arte. Ele já teve outros codinomes ao longo de uma breve e acintosamente frutífera carreira de artista: foi moderno (2000-2001), foi Pós-moderno (2002-2005), Contemporâneo (2005-2006) e, por fim, encontrou a verdadeira vocação, que não é, segundo ele, ser artista, mas “cultivar a natureza da arte”, como Jardineiro.

“A arte surgiu na minha infância como uma dúvida: eu tinha uma memória muito forte de brincar em um galinheiro, em um sítio que visitava sempre nas férias, em Minas Gerais, mas não sabia se essa memória provinha de uma experiência ou de uma fotografia. Passei muitos anos com essa dúvida que, de certa forma, nutriu minha vontade de querer entender mais sobre a natureza da fotografia”, conta o Jardineiro André.

Uma dificuldade de mobilidade aos 17 anos levou-o a começar a fotografar. “Por algum motivo misterioso tornei-me uma fotografia: não tinha ação própria, não conseguia me comunicar e vivia em um espaço plano”, explica. Ele elaborou, em 2001, um manifesto sobre o que seria a arte do futuro, intitulado Neo-pós-pós, passou a criar e costurar as próprias roupas e conseguiu “sair do mundo estático e fotográfico” em que havia se metido.

Em 2002, Feliciano ingressou na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e, por que deixou “de ser espontâneo”, adotou o codinome Pós-Moderno. “No ambiente intenso de criação em que me encontrava no final do colegial, eu não conhecia outra possibilidade a não ser cursar uma faculdade de artes. Perdi um pouco a noção de realidade durante o curso e me aprofundei nas questões sobre a natureza da fotografia”, conta.

No percurso de formação, o artista introjetou de tal maneira o pensamento sobre a fotografia e as experimentações intensas com o meio (técnica e simbolicamente) que voltou a se sentir, no último ano do curso, estático e com dificuldade de se comunicar. “Tornei-me o próprio contemporâneo. Só consegui sair do buraco com ajuda do meu orientador, que me ensinou a ler e escrever textos de modo claro e estruturado para, enfim, conseguir me comunicar.”

Orientado por Felipe Chaimovich em seu trabalho de conclusão de curso, em 2006, o que o Jardineiro André Feliciano fez foi ousar reescrever a história da arte moderna a partir de uma perspectiva fotográfica e decretar o fim do contemporâneo e o surgimento de um novo ciclo histórico: o Florescimento.

Florescentista há cinco anos, o Jardineiro vem se dedicando a cultivar a natureza da arte em lugar de superpovoar o mundo com mais obras de arte. Escritos florescentistas, festas florescentistas e conversas florescentistas perfazem sua obra hoje. Nas festas, por exemplo, o anfitrião serve apenas comidinhas em forma de câmera, que simbolicamente fotografam os convivas.

“A minha entrada no circuito das artes começou de fato com a exposição Ecológica no MAM-SP. Depois dessa iniciativa, as pessoas dizem que entenderam mais o que eu tento falar há muitos anos. Entretanto, meu trabalho é um longo cultivo, mas a poética do meu trabalho não está pronta”, avalia. Em 2011, Jardineiro fez duas exposições em Nova York, na Bonni Benrubi Gallery e em um prêmio internacional de jovens artistas no Brooklyn, e tem prevista para março sua primeira individual na Galeria Zipper, em São Paulo.

O QUE SIGNIFICA SER “JOVEM ARTISTA”
A artista e professora de artes visuais da Faap Dora Longo Bahia faz uma diferenciação entre “artista jovem” – “uma denominação retroativa que pressupõe a existência de uma obra feita por alguém que faz arte (o artista)”, como subentendido no título do romance de James Joyce – e “jovem artista”, designação que prescinde da obra. “O jovem artista é uma categoria que existe antes da arte; é uma promessa do mercado, é uma aposta que pode dar certo (valorizar) ou não”, defende. As escolas de arte, hoje, ainda segundo Bahia, ensinam os alunos a ser “jovens artistas”, a se inserir no mercado e até a usar dispositivos de “subversão”.

Uma marca dos jovens artistas no contexto atual é a diversidade de meios que escolhem para se comunicar. Apesar de certo predomínio da pintura figurativa (basta visitar a exposição Os Primeiros 10 Anos, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até 26 de fevereiro, para perceber que esse suporte é o cavalo de batalha da nova geração), os artistas também fazem farto uso do vídeo, da fotografia e do tridimensional.

Mesmo na pintura há visadas marcadamente distintas, como no caso da obra de Rafael Carneiro. Ele se vale de um olhar mediado ou maquínico, capturado por câmeras de segurança ou stills de filmes de Alfred Hitchcock, como base para uma pintura que faz questão de figurar a própria artificialidade. “Tento resolver o mal-estar cultural em meu trabalho. Para mim, a obra de arte não tem nada a ver com sublimação, acho que o que existe é a tentativa de solucionar o jogo de necessidades psicológicas em um objeto”, afirma.

O problema é, na opinião do artista, que no mercado de arte aquecido existe pouco espaço para a subjetividade. “Não posso negar que a pintura hoje é algo vendável. Mas uma pintura minha leva um mês para ser feita, cinco horas por dia. Ter uma galeria me obrigou a ter a responsabilidade de trabalhar, mas a investigação crítica nunca deixou de ser parte integrante do trabalho”, defende um desencantado Carneiro, sugerindo que nem todo mundo que está pintando consegue conciliar demanda e consistência de pesquisa.

TRANSPARÊNCIA E OPACIDADE
De família tradicional, Flávia Junqueira cursou direito e filosofia antes de estudar artes também na Faap. “A decisão pela faculdade de artes plásticas não foi fácil. Cresci em ambiente familiar que sempre me deu liberdade de escolha, porém, por estar imersa em um contexto de valores mais tradicionais, me sentia pressionada a escolher profissões que proporcionassem maiores garantias no mercado de trabalho”, conta.

Quando se formou, em 2009, a artista já tinha uma boa inserção institucional com participações em salões e editais, e também no mercado. “Esse caminho me possibilitou começar a apresentar meu trabalho fora da faculdade, o que despertou o interesse de galerias. A maior dificuldade que encontrei foi entrar no mercado muito jovem. Tive de aprender a dividir o tempo entre dar continuidade ao processo criativo e administrar tarefas além da produção. Isso é muito difícil, pois estou em um processo inicial de construção do trabalho. Percebo que muitos jovens artistas também acabam tendo essa dificuldade, da pouca experiência aliada à demanda comercial, o que pode comprometer a produção e a concentração”, desabafa.

Um universo solitário de referências infantis marca a produção de Junqueira. A artista realiza performances fotografadas, simulando o ambiente multicolorido de festas infantis (pilhas de presentes, balões, casa de bonecas, flores), nos quais se insere vestida de menininha e com expressão melancólica.

Flávia Junqueira e Sofia Borges trabalham em limites diametralmente opostos do espectro da investigação fotográfica: a primeira se vale da transparência e a segunda, da opacidade. A melancolia do set infantil de uma tem, entretanto, um paralelo com as indecifráveis encenações da outra, que modifica pouco o ambiente de forma direta. As transformações desse set solitário e desolado são produzidas no interior do processo fotográfico, da iluminação ao processamento na ampliação.

“Eu sempre soube que trabalharia em alguma área ligada à criação. Durante o colegial cheguei a resolver que seria escritora. Mas, quando, morando em São Paulo havia dois meses (aos 19 anos), visitei uma exposição de arte contemporânea, me dei conta de que havia uma área do conhecimento na qual eu poderia exercer aquele tipo de prática. Ao me dar conta disso, decidi cursar artes plásticas”, lembra Borges, que já saiu da USP, em 2008, com galeria (Virgilio, em São Paulo).

A entrada no mercado de arte é menos cristalina no caso de alguém trabalhando com performance. Felipe Bittencourt conta que sua inserção foi “bem torta”: carioca vivendo em São Paulo, participou da primeira mostra coletiva no Rio de Janeiro. “Meu trabalho foi extremamente desrespeitado, assim como o de muitos outros: um edital enganoso e um espaço precário que não atenderam a nenhuma exigência dos artistas. Decepcionado, não produzi por um tempo”, lembra. De uma série de decepções pessoais surgiu o projeto de realizar performances de limite físico, que foram os trabalhos que lhe deram projeção e renderam convites para expor pelo Brasil em espaços institucionais e festivais internacionais. Um exemplo é a ação de apontar vários lápis durante três horas, até sangrarem os dedos. “Testo o limite do objeto e o objeto testa o meu limite”, explica o artista.

Bittencourt trabalhou na exposição Objeto Transitório para Uso Humano (2008), de Marina Abramovic, na então Galeria Brito Cimino, na qual as pessoas podiam interagir com os objetos e propostas da artista. “Minha função era performar ações durante 12 horas, todos os dias, por um mês, como exemplo vivo e constante na exposição. Foi um contato muito forte e uma grande influência em minha produção”, conta ele. “A constante crítica de que minha produção não renderia dinheiro foi outro fator importante no meu processo como artista, porque resolvi produzir somente pela arte e não pelos seus fins financeiros”, observa.

Um exemplo disso é o belíssimo projeto de performance diária que Bittencourt iniciou em 8 de dezembro de 2010. “Minha proposta foi fazer uma ideia de performance por dia durante o período de um ano, lançando, assim, um desafio e tomando a ação de desenhar diariamente como performance. Nenhuma foi desenhada com o intuito de acontecer de fato. Não havia limitações financeiras, lógicas ou de segurança nas ideias desenhadas.”

HEGEMONIA DE UM PADRÃO DE GOSTO
“A arte está cada vez mais colada na moda, operando segundo uma mesma lógica: assim como as marcas lançam coleções sazonais, também as faculdades e instituições lançam artistas sazonalmente”, analisa Dora Longo Bahia. “Hoje, o jovem artista tornou-se uma mercadoria, é uma commodity como as ações do mercado de futuros, pois a arte reproduz o sistema econômico”, continua. “A descontextualização da experiência do artista em seu ateliê em relação à obra formatada para estar nos museus e galerias é muito perversa.”

Com base em uma pesquisa de Tiago Mesquita para o livro Pintura Brasileira Século 21, que a editora Cobogó lança em fevereiro, a exposição no Instituto Tomie Ohtake promove relações entre a onipresente produção de pintura de nomes que despontaram no cenário da arte na última década com obras em outros suportes de colegas de geração. Mesquita, que é cocurador da exposição, atribui a profissionalização dos jovens artistas a fenômenos novos como a continuidade do processo democrático e, de seis a oito anos para cá, à estabilidade econômica do Brasil.

“Esse contexto permite uma continuidade na trajetória dos artistas; não há muitos sobressaltos. Além disso, há muita organização do meio de arte nos dias de hoje”, afirma Mesquita. A facilidade do acesso a informações – seja pela quantidade de livros circulando na internet, seja pela facilidade de se fazer uma viagem de formação – também contribui para a continuidade de uma investigação artística, na opinião do curador. “Parte da produção brasileira atual é muito marcada pela hegemonia do mercado internacional de arte, pela hegemonia de um padrão de gosto, e isso é um problema”, diz.

*Publicado originalmente na edição impressa #4.