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Postado em 14/03/2012 - 3:53
Roqueiro não envelhece?
Tony Bellotto

Numa noite conturbada, em que delírios etílicos se misturam às fantasias eróticas de praxe, toca o telefone

Roqueiro

Legenda: Ilustração sobre foto de Theo Wargo/Wireimage.

Numa noite conturbada, em que delírios etílicos se misturam às fantasias eróticas de praxe, toca o telefone. Vislumbro entre névoas de remela o iphone: 3h15 da matina. “Alô?”, balbucio, zoado. É a esfinge. Ela me liga de vez em quando, sempre me propondo enigmas inúteis em horários proibitivos.

“Isso é hora, esfinge? 3h15?” “Roqueiro de merda”, diz a esfinge – sim, não há cerimônias entre nós –, “você não era assim, belo”. Uma pausa rápida, para que se entenda um pouco mais da esfinge: ela fala com sotaque italianado, com um timbre de voz idêntico ao da falecida atriz Nair Belo (às vezes, acho que a esfinge é a Nair Belo). “O tempo passa, esfinge. as coisas mudam. Não tenho mais 25 anos nem a mesma predisposição para atravessar em claro noites escuras.”

“Ah, você fala como o corvo, de Edgar Allan Poe! só falta me dizer agora: ‘Nunca mais’.”

“Nunca mais o quê, Nair?”. “Por que você sempre me chama de Nair?” “Essa é a pergunta que você quer me fazer? Quer dizer que a esfinge me liga às 3h15 da manhã só pra saber por que eu às vezes a chamo de Nair? Você também não era assim, bela.” “Vá tomar no cu, italiano de merda. Minha pergunta é: por que roqueiro não envelhece?” E desliga.

Não sei vocês, mas, quando a esfinge me propõe alguma questão, preciso responder, sob pena de ser devorado – sou um titã, afinal, envolvido até as vísceras com a mitologia grega, vocês entendem. Levanto-me, vou até o banheiro e me encaro no espelho: por que roqueiro não envelhece? Como assim? À minha frente está um sujeito razoavelmente enrugado, com cabelos brancos nas têmporas, testa cada dia mais larga, manchas senis no rostinho cansado de um cinquentão conservado em barris de carvalho, exalando pelos poros os profundos questionamentos de um homem de meia-idade: será que creme de babosa retarda mesmo a calvície? Tenho certeza de que esses pneuzinhos estavam menores ontem à noite.

Eureka!, penso de repente. Já sei por que roqueiro não envelhece! Pelo simples fato de que roqueiros morrem antes de ficar velhos: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain, Bradley Nowell, Renato Russo, Cazuza, Marcelo Fromer, Cássia, John Lennon, Elvis, Raul. Mas e os que não morreram?, pergunta aquela metade de mim que vive enchendo o saco da outra: Mick Jagger, Iggy Pop, Keith Richards… Peraí, Keith Richards não é velho? Ele é o quê? Um maracujá guitarrista?

Volto pra cama. Amanhã vou dizer à Nair Belo que ela precisa ler o retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

Tony Bellotto é guitarrista da banda Titãs desde os anos 80. Escreveu sete livros. No Buraco, seu mais novo romance, foi publicado em 2010 pela Companhia das Letras.

*Publicado originalmente na edição impressa #4