icon-plus
Postado em 19/06/2023 - 11:46
Séculos, anos, horas
Editorial da edição #58 no ar!

Fisguemos, entre as 39.766 palavras que compõem esta edição #58, duas imagens. Duas cenas de dois romances citados em dois textos: a passagem de Amuleto (1999), de Roberto Bolaño, em que a narradora se encontra com o fantasma da pintora surrealista Remedios Varo e ambas se põem a escutar, juntas, um concerto; e a personagem-título de Gradiva (1903), de Wilhelm Jensen, assombração que escapa de um baixo-relevo romano, que transporta o narrador para a cidade de Pompeia, antes da erupção do Vesúvio. Tomemos esses dois espectros dissimulados entre as páginas da revista como duas guias de leitura.

Agora, imaginemos que a revista é um labirinto. Um labirinto que se estende em múltiplas direções, a partir de um centro comum: um tema, um enigma, de onde todos os caminhos partem e para onde tentamos retornar – com alguma possibilidade de sucesso –, atravessando bifurcações e encruzilhadas. Uma revista é um labirinto porque, apesar de numerada (274 páginas), não requer a linearidade da leitura. Pode ser atravessada de trás para frente. Pode-se pular amarelinha entre seus textos. Jogar xadrez. Como nos labirintos dos versos de Apollinaire e de Cortázar, não se trata de ler da esquerda para a direita. Além disso, pode-se ainda amassar, destacar, rasgar, reorganizar, renumerar a revista. Ela é tátil. Impressa.

Entendido o labirinto também em sua dimensão temporal, como lugar de encontro entre passado e futuro, a edição #58 propõe-se a antecipar algumas reflexões sobre o centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo, de André Breton, obra que apresentou os fundamentos teóricos do movimento, em 1924. As efemérides e datas comemorativas, além de questionar ou fortalecer marcos, nos servem para encarar o caráter cíclico e acumulativo das práxis artísticas e intelectuais. Em 1996, em O Retorno do Real, o crítico Hal Foster narrou uma história de repetições e diferenças entre a arte e a crítica das vanguardas do começo do século 20 e das neovanguardas do final. O mesmo dispositivo de observar os rebatimentos e espelhamentos entre a história e a contemporaneidade é adotado nesta edição, O Retorno do Surreal – subtema da pesquisa anual adotada pela seLecT_ceLesTe, em 2023: as dimensões da realidade.

Cabe começar apontando a etimologia da palavra surreal – sobrerrealidade, ou mais realidade. O argumento de Foster de que as vanguardas retornam ao futuro, reposicionadas em novas práticas no presente, é um estilingue temporal que utilizamos nesta edição, buscando ressignificar conceitos e procedimentos surrealistas como delírio, acasoobjetivo, androginia, sortilégio, erotismo, revelação, incógnito, epifania, abjeto, abismo, olhar desejante, objeto encontrado…

Os fantasmas caminham nas entrelinhas. Carregam lamparinas, iluminam sendeiros, projetam sombras. Remedios Varo reaparece no estudo de caso dedicado a Leonora Carrington, artista que escava em sua obra plástica e literária um passado précapitalista, matriarcal, quando a dignidade não estava atrelada à mercadoria; tese que se atualiza na curadoria editorial de Eloisa Almeida sobre as relações entre trabalho e delírio nas obras de Érica Storer, Renata Felinto e Mika Rottenberg.

Já o fantasma – ou fantasia – Gradiva, a mulher que caminha com a “leveza de um pássaro”, atravessa outra imagem, “de um pássaro que mantém os pés estáveis (no presente), a cabeça voltada para trás (passado) e carrega um ovo no bico (futuro)”. Esta é a imagem adinkra (sistema visual de povos do Oeste africano) do sobrenome de Keila Sankofa. “Sankofa é a demonstração de que não há separação temporal no mundo, que vivemos em um amálgama geracional”, escreve a crítica Luciara Ribeiro, no portfólio dedicado à artista manauara.

O refluxo temporal rearticula-se ainda no que Fernando Lindote chama de “inconsciente da pintura”, conjuntos de elementos que, segundo texto de Juliana Monachesi, ele toma emprestado de outras artistas – como Louise Bourgeois e Maria Martins –, que por vezes desaparecem no fundo da tela, mas continuam sempre ali, como fantasmas.

Arqueologia é outra dimensão deste labirinto. Que vasos comunicantes podem existir entre as escavações feitas hoje por artistas afrodiaspóricos – utilizando tecnologias ancestrais-futuristas – até suas raízes e origens, e outras movidas pela radicalidade surreal, trazendo à luz recalques e traumas soterrados? Amarrando os percursos do labirinto #58, o projeto gráfico de Nina Lins para a edição representa o retorno do surreal em recortes, colagens e repetições. Porque o real não pode ser representado nem nomeado, só repetido.

Sad Cat (Grace) (2008), de assume vivid astro focus (avaf)