icon-plus
Postado em 23/05/2012 - 7:11
Sessão de acupuntura
Sheila Leirner, de Londres

Em retrospectiva na Tate Modern, Yayoi Kusama faz ponte entre a arte psicodélica dos anos 1960 e a arte virtual do século 21

Kusama

Legenda: Instalação Infinity Mirrored Room (2011). (Foto: Lucy Dawkins/Tate Phorography)

Quem perdeu a grande exposição de Yayoi Kusama no Centro Georges Pompidou, em Paris, no ano passado – e agora teve de atravessar o Canal da Mancha, como eu, para recuperá-la na Tate Modern –, não ficará frustrado. O trabalho pioneiro de mais de seis décadas dessa artista, nascida em 1929, compensa plenamente o esforço.

Concebida como uma série de ambientes de imersão, a mostra desenrola-se numa sequência de salas surpreendentes, cada uma delas dedicada ao aparecimento de uma nova postura estética. A maior parte possui tal intensidade alucinatória e tamanha acumulação de pormenores que, no final, não é apenas a sua visão única do mundo que se desvela aos nossos olhos. É a nossa própria capacidade de deslumbramento que ela põe à prova.

O nome Yayoi Kusama evoca uma imagem e uma lenda. A imagem é a das flores, do símbolo Paz e Amor e da frase “Faça amor, não faça a guerra” que ela assumiu, nua, na manifestação coletiva contra a guerra do Vietnã, no jardim do MoMA, em Nova York, e nos happenings escandalosos, às vezes pornográficos, que provocaram a imprensa americana tanto quanto Andy Warhol o fez.

A lenda é aquela da loucura, uma vez que ela sempre admitiu que sua obra foi determinada por alucinações de infância, e que, a partir de 1977, a motivaram a decidir viver em um hospital psiquiátrico de Tóquio.

Ao contrário da loucura, porém, esse trabalho – apesar de ter recebido intensas descargas psíquicas e simbólicas – é invariavelmente desenvolvido com um formidável controle de meios. Objetos, pinturas e instalações possuem resultados múltiplos, lúdicos e terapêuticos, como as salas com espelhos deformantes e efeitos mágicos à maneira dos parques de diversões. Ela fabrica ilusões com a lucidez de uma artista conceitual. Possui a justa obsessão, que termina quando o projeto chega ao fim. Nenhum trabalho excede a artista e os próprios limites.

Sua obra faz a ponte entre a geração “bicho-grilo” e aquela de Mariko Mori, que nos é mais próxima, e entre a arte psicodélica e o virtual. Passeia entre business e loucura, marginalidade e mídia. Kusama, que se consagra hoje à pintura, começou com ela nos anos 1950 sobre um fundo de surrealismo. Em Nova York, onde viveu de 1958 a 1973, experimentou a abstração e o monocromatismo, sempre fugindo do formalismo. Em 1962, entrou na fase obscena das esculturas/tentáculos erécteis como falos e das esculturas/tubérculos torcidos. Durou pouco. Em 1963, enveredou por ambientes onde aparecia geralmente nua. Na Factory, estúdio de Andy Warhol, sobre a ponte do Brooklyn, e no MoMA, Kusama foi, na segunda metade dos anos 1960, uma das principais personagens da chamada body art, muito mais engajada do que a própria Yoko Ono.

A exposição na Tate reenvia o espectador ao período glorioso das orgias urbanas ambulantes e das pinturas corporais. Naquela época, a sacerdotisa da nudez tornou-se também uma estilista de coleções para as noitadas da burguesia liberada. Na primavera de 1969, ela abriu a própria butique de roupas, com flores que mostravam seios, ventre e nádegas. Essas roupas podiam ser vistas nos happenings, depois documentados e legendados pela artista como verdadeiras fotonovelas: amor, sexo e beleza.

Kusama, que esteve próxima de artistas como Joseph Cornell e Frank Stella, foi amante de Donald Judd e sempre evitou ter outras referências se não dela própria e de suas alucinações. Muito embora não tenha escapado da influência da pop, op e arte psicodélica. Pode-se dizer também que sua obra tem parentesco com Niki de Saint-Phalle e com o Groupe de Recherche d’Art Visuel, ou Grupo de Pesquisa em Artes Visuais (GRAV), bastante conhecido em Nova York, do qual faziam parte Julio Le Parc e outros artistas cinéticos.

Há ainda tanta coisa a dizer sobre o percurso incomum dessa artista nascida em Matsumoto, no coração das montanhas japonesas da ilha de Honshu… Mas o mais importante é o que resta desse caminho: o desejo sem igual de autoconhecimento para escapar de si mesma e dotar as formas (bolinhas ou não) de uma energia vital capaz de transformá-la em terapeuta. Nunca fiz sessão de acupuntura, mas saí da exposição com a sensação de ter passado por uma, em escala gigante.

Yayoi Kusama

Até 5 de junho. Londres, Inglaterra
www.tate.org.uk/modern

Sheila Leirner é crítica de arte, jornalista e curadora. Vive e trabalha em Paris desde 1991. Foi curadora-geral da 18º e 19º bienais de São Paulo.

*Publicado originalmente na edição impressa #5