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Postado em 28/03/2012 - 2:10
Takashi Murakami
Angélica de Moraes

O japonês que superou Andy Warhol na produção globalizada e massiva de arte faz um pós-pop ambíguo, mistura de fofura e perversidade

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Legenda: Murakami na parada de Thanksgiving day em Nova York, em 2010, com os balões de seus personagens Kaikai e Kiki ao fundo. (Cortesia Takashi Murakami/ Kaikai Kiki Co. Ltd.)

The Factory (a Fábrica), o mítico estúdio que Andy Warhol criou nos anos 1960 na Rua Lexington, em Nova York, para inundar o mundo das artes com uma produção vertiginosa, fica minúsculo na comparação. O mundo das artes mudou definitivamente de escala. Warhol tinha meia dúzia de auxiliares e seu mercado eram os EUA e, depois, alguns países europeus. Takashi Murakami vende para os cinco continentes, mora entre Tóquio, Nova York e Los Angeles e mantém ocupada uma centena de assistentes, em três “fábricas”: em Tóquio, trabalham 50 assistentes no estúdio central e mais uma dezena no estúdio de animação. Na sede norte-americana, em Long Island (NY), há outros 40 auxiliares e mais uma dezena no escritório nova-iorquino, que coordena a produção executiva de sua agenda de exposições ao redor do mundo, em estreito diálogo com as galerias que o representam.

A próxima exposição individual de Murakami será inaugurada em 9 de fevereiro e fica em cartaz até 24 de junho, no Gatar Museum, em Doha (Golfo Pérsico). Denominada sugestivamente de Ego, é a primeira em grande escala do artista no Oriente Médio. Acontece depois do sucesso da individual no Palácio de Versalhes (França), em 2010, e na galeria Gagosian de Roma, no ano passado.

Autorretrato

Legenda: Kaikai Kiki and me – for better or worse, in good times and bad, 2010. (Cortesia da Galeria Marianne Boesky, NY)

Em pouco mais de duas décadas, Murakami criou um império onde jamais o sol se põe: o Kaikai Kiki Company Limited. O nome da empresa dá a pista para entender sua produção. São dois personagens onipresentes na obra: Kaikai é um bebê róseo e feliz metido em uma fantasia de coelho, Kiki tem expressões diabólicas e dentes serrilhados de diabinho. Ambos saltaram do universo otaku, ou seja, da cultura de massa japonesa baseada no animê (desenho animado) e no mangá (história em quadrinhos).

A cultura oficial japonesa detesta as manifestações otaku na mesma medida em que venera a cerimônia do chá. Mas Murakami é a melhor representação da cultura japonesa contemporânea. Uma cultura multifacetada que trata as fraturas do pós-guerra e as sequelas atômicas de Hiroshima e Nagasaki desenvolvendo uma fascinante relação de amor e ódio com o Ocidente. Algo novo que refaz os mitos de bravura não mais pelas sagas dos samurais, mas pela ação dos super-heróis apropriados da tradição ocidental dos estúdios de HQ da Marvel e da Disney.

De Warhol à Disney

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Legenda: Release chakra’s gate at this instant (2008), acrílica e folha de platina sobre tela.

A aparente banalidade da obra de Murakami é apenas isso: aparente. O artista é autor do Manifesto Superflat (2000), texto sofisticado em que defende uma arte feita de superfícies planas, em oposição à tradição ocidental da perspectiva renascentista. Seria possível imaginar a maestria de desenho de Murakami sem que houvesse, antes, o mestre nipônico da gravura em madeira (xilogravura) Hokusai? Foi Hokusai, com as séries de panorâmicas misturadas a personagens, quem prefigurou o universo planar do desenho animado de qualquer latitude. Também da mesma época (Período Edo, séculos 16 a 19), a pintura Kanô (fundo de ouro), é rigorosamente planar ao criar cenas em diversas distâncias e também influenciou Murakami, que focou seus estudos universitários nesse assunto.

Warhol, autodidata alérgico a teorias, também transformou suas pinturas em superfícies planares e esse é um dos traços a unir a arte pop do norte-americano ao pop otaku de Murakami, além do uso de matrizes serigráficas na pintura. Mas a personalidade dos dois não podia ser mais diversa. Warhol ganhou de seus assistentes o apelido de Drella, por combinar a candura de Cinderela e o utilitarismo vampiresco de Drácula. Algo a ver com Kaikai e Kiki? Difícil saber diante da notória discrição oriental. Mas Warhol não costumava criar oportunidades profissionais para seus assistentes. Murakami já tem uma década dessa prática. “Kaikai Kiki também trabalha para nutrir e desenvolver a próxima geração de artistas”, diz ele em seu site oficial.

Peituda

Murakami concebeu e organiza, desde 2001, a Geisai Art Fair, uma feira de arte originalíssima, em que não há a mediação de galerias. Os jovens talentos são selecionados por um júri de curadores de prestígio e participam de uma mostra com duração de um único dia, com acesso direto a colecionadores e a um público especializado. A próxima feira Geisai acontece dia 14 de setembro, em Tóquio. O evento anterior foi apresentado em paralelo à feira Miami Basel, em dezembro.

Além disso, Murakami participa de coletivas com seus assistentes mais talentosos, revelando nomes como Yoshitomo Nara e, atualmente, Akane Koide (que começou a expor na Geisai com 15 anos), autora de retratos de uma juventude que se autoflagela om lâmina como reação ao vazio consumista. Assim como Nara no passado e Koide na atualidade, muitos jovens povoam os estúdios de Murakami, somando competências para executar projetos do astro.

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O processo de trabalho assemelha-se ao dos estúdios Disney, onde o roteiro e as características dos personagens são esboçados pelo autor e completados pela equipe. Curto-circuito no conceito de autoria? Sim, toneladas disso. Mas o artista garante que acompanha todos os detalhes e estágios de produção de uma peça. A internet e a webcam estão aí mesmo para tornar essa versão aceitável como verdadeira.

As cores, por exemplo. Ninguém que já teve o privilégio de ver ao vivo uma pintura de Murakami deixou de ficar impressionado com a sutileza das centenas (centenas!) de camadas de tinta sobrepostas com total controle de registro de impressão serigráfica, bordas nítidas e cromatismo intenso e complexo.

Luxo e arte

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Em entrevista ao site www.paris-art.com em novembro de 2006, quando de sua exposição de pinturas na parisiense Galerie Perrotin, o artista confirmou que “a serigrafia me permite trabalhar com camadas sucessivas; a pintura se acumula e os tons mudam em razão desse acúmulo. A textura evolui nesse processo. (…) O trabalho serigráfico, mecânico, permite obter uma base de trabalho que depois é terminado à mão”. Nas fases preparatórias, observa ele ainda, “o computador é muito útil, para desenvolver a ideia principal e estabelecer um plano geral. Logo a seguir, meus assistentes executam o meu projeto. Dirijo e acompanho tudo que acontece e, no fim das contas, é como se eu mesmo pintasse todas as peças”.

A aparente fofura do elenco de personagens de Murakami, moldado nas histórias em quadrinhos infantis, guarda diversos signos do mal-estar cultural gerado pelo embate entre o Japão tradicional e o Japão do século 21. Os cogumelos vermelhos com bolinhas brancas, constantes nos trabalhos do artista, remetem ao cogumelo alucinógeno Amanita muscaria, mas também ao grande cogumelo, o maior de todos: o da bomba atômica. Um de seus protagonistas ganhou o nome de Little Boy (garotinho), o mesmo nome da bomba que foi lançada sobre Hiroshima.

Assim como Warhol, Murakami fez do mundo da moda e da publicidade algo integrado à sua produção. A convite do designer Marc Jacobs, diretor artístico da Louis Vuitton, Murakami desenvolveu, a partir de 2000, séries de padronagens para bolsas e outros acessórios fashion. As mais famosas e disputadas são as séries Eye Love Monogram (2003) e Cerises (Cerejas, 2005). Mas novamente Murakami foi muito além: instalou uma loja Vuitton no meio do espaço expositivo de sua mostra retrospectiva, em 2007, no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (Moca), com bolsas de tiragens especialmente criadas para ser vendidas nesse local. Como obras de arte.

Bolsas

“Isso significou o ponto mais alto dessa colaboração entre o mundo da arte e o mundo da moda”, disse Yves Carcelle, presidente internacional (CEO) da marca. Marc Jacobs observa que o evento no Moca “foi um monumental casamento entre arte e comércio, para ser registrado tanto nos livros de história da moda como de história da arte. A melhor parte disso tudo é que continua, cresce, se transforma e fascina”.

Para Murakami, “essa experiência na indústria do luxo é transferível ao mundo da arte. A comparação funciona perfeitamente. A sede de novidade é tão grande quanto, ela é a marca de fábrica da arte contemporânea, que vive bradando pela renovação”.

*Publicado originalmente na edição impressa #4.