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Aracá, AM/ Surucucus, RR (1983), sobreposição acidental de duas imagens é descoberta nos arquivos de Claudia Andujar (Foto: Cortesia da Artista)
Postado em 16/04/2019 - 11:08
Yoasi sobre Omama
Série de fotografias inéditas de Claudia Andujar revela a sobreposição acidental e simbólica dos princípios da vida e da morte dos Ianomâmi
Paula Alzugaray

A história Ianomâmi atribui a criação de seu povo à copulação de Omama com a filha do monstro aquático Tëpërësiki. Yoasi, irmão do demiurgo Omama, é o responsável pela origem da morte e dos males do mundo.

A experimentação com filtros, filmes e projeções sempre esteve no raio de ação de Claudia Andujar, desde que estabeleceu seus primeiros contatos com aldeias Ianomâmi para uma reportagem da primeira edição da revista Realidade, dedicada à Amazônia, em 1971. Naquele momento, Andujar já driblava a objetividade jornalística e antropológica aplicando filtros e resinas sobre as lentes, transformando a tênue incidência de luz que passava pelas frestas dos tetos das malocas, em explosões de estrelas no céu da imagem.

No hábil exercício da fotografia com baixa luminosidade, Claudia Andujar deu vazão a um vasto repertório simbólico de entidades invisíveis e conceitos abstratos que aprendeu nas aldeias. As cenas da vida cotidiana, da caça, da pesca, do repouso, da cozinha ou do ritual de consumo coletivo do alucinógeno yãkoana para contato com os espíritos xapiri, alcançaram dimensão metafísica pelos olhos de Andujar. Essas imagens exuberantes de uma vida que flutua na floresta compuseram a primeira parte da exposição Claudia Andujar – A Luta Yanomami, no IMS Paulista.

Até que chegamos à segunda parte da mostra, em outro andar da instituição, que apresentava o período ativista do trabalho de Andujar quando os anos idílicos na bacia do Rio Catrimani, em Roraima, foram interrompidos pela invasão desenvolvimentista do governo militar. Em meados dos anos 1970, a descoberta da existência de minérios nobres nas terras indígenas atraiu garimpeiros e mineradoras e deu início à construção da Rodovia Perimetral Norte (nunca terminada), rasgando a Amazônia e espalhando doenças, conflitos, desmatamento, poluição e epidemias. Nesse momento, a fotografia de Andujar passa a atuar como instrumento de denúncia. Em 1983, acompanhando o trabalho voluntário da organização francesa Médicos do Mundo, em uma aldeia em Aracá (AM), ela realiza os retratos de identificação que mapearam o povo Ianomâmi e renderam a célebre série Marcados, exposta na 27ª Bienal de São Paulo.

É justamente no início desta segunda parte da exposição do IMS que se encontrava uma série de imagens surpreendentes, localizadas pelo curador Thyago Nogueira no arquivo de Andujar – como um tesouro no meio da floresta –, nunca antes expostas. Trata-se de um filme que revela a sobreposição acidental de dois conjuntos de imagens: os retratos de identificação feitos em Aracá, no ambiente asséptico da atividade médica, e as cenas da população em sua vida cotidiana, em ambiente externo, livres da rotina médica.

A sobreposição acidental das imagens (obtidas em dupla exposição do mesmo filme) remete a uma sobreposição mitológica: o tempo de Omama, e o tempo de Yoasi. São imagens em que a doença e a cura coabitam. São quase uma epifania.