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O Bastardo (2023), de Benedito Ferreira [Foto: Paulo Rezende]
Postado em 21/05/2024 - 5:16
A vida passa, mas sua imagem fica
Uma reflexão sobre a individual Pantera Solidão, de Benedito Ferreira, e o gesto artístico sobre as imagens existentes

O século XXI inaugurou uma época de hiperinflação de imagens sem precedentes. Num mundo asfixiado por imagens, é cada vez mais difícil perceber o mundo. O artista holandês Erik Kessels plasmou tal ideia em sua instalação Photography in abundance (2011), no Museu de Fotografia (FOAM) de Amsterdã, onde espalhou aproximadamente meio milhão de fotografias impressas em tamanho cartão postal pela galeria – quantidade que correspondia, à época, a subida de imagens durante 24 horas na rede Flickr. Se dedicássemos um segundo para ver cada imagem, demoraríamos duas semanas para vê-las todas, revelando assim, uma incomensurável e sufocante imersão.

Precisamente aqui, no âmbito da reflexão sobre o lugar, o excesso e o uso das imagens no mundo contemporâneo, é que podemos situar o gesto artístico de Benedito Ferreira. Sua mais recente exposição individual, Pantera Solidão, realizada de 31 de outubro de 2023 a 25 de fevereiro de 2024 no Centro Cultural Octo Marques em Goiânia (GO), com curadoria de Divino Sobral, merece especial atenção. A mostra apresenta sete obras inéditas em que o artista volta às questões nevrálgicas que permeiam praticamente toda a sua produção: pensar a complexidade da imagem na contemporaneidade, seja como produção, circulação, pensamento e ação. Benedito Ferreira viaja mundo afora, para sempre retornar ao seu lugar de origem, Goiânia, que é pensada de maneira especial em suas produções. Em seus deslocamentos, frequenta os “mercados de pulgas”, sempre à procura de materiais que possibilitam o desenvolvimento de sua prática artística. Por tanto, no cosmopolitismo nômade de Ferreira e em seus gestos artísticos, misturam-se as figuras do artista coletor e do artista viajante.

O Bastardo (2023), de Benedito Ferreira [Foto: Paulo Rezende]

Dos trabalhos apresentados na exposição, O Bastardo ocupa um lugar central, física e conceitualmente, e, por isso, merece especial interesse e atenção. Trata-se de 33 álbuns fotográficos datados entre 1930 e 1980, coletados em Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa, Salvador e Curitiba. Os álbuns são, em sua essência, uma história narrativa criada por alguém que decide a sequência das imagens ao construir uma história possível. Ferreira dispõe os álbuns na parede da galeria e intervém nessas histórias, situando imagens intrusas, deslocando o que poderíamos considerar personagens que se transformam em visitantes às outras histórias fazendo que, através do gesto do artista, a realidade documental da imagem se misture com a ficção. Nesta ação, penso que Ferreira volta às origens da fotografia, quando Louis Daguerre criou, em maio de 1838-39, suas duas famosas imagens do Boulevard du Temple; uma primeira quase notarial e outra em que os personagens humanos acabam por posar, atuar, e, por tanto, ficcionalizar.

Passear pela galeria é estar diante de um ciclone de imagens e histórias que nos interpelam esteticamente por todos os lados. No vendaval, consigo identificar uma imagem que me provoca de forma especial; entre registros da torre Eiffel, o David de Michelangelo e diversas famílias posando em suas férias estivais, encontra-se uma imagem difícil de traduzir; tortuosa, corroída pelo tempo, feita escombros, se apagando, na linha tênue da existência, talvez seja a imagem chave para traduzir a névoa que cai sobre os álbuns, hoje, sem proprietários. Uma imagem fantasmagórica para falar dos fantasmas que assolam a sala. Por um lado, a memória, dilatada, dilacerada, confusa, resistente, e, por outro, a imagem, que às vezes pode tudo, e muitas vezes não pode nada.

POR UM LADO, A MEMÓRIA, DILATADA, DILACERADA, CONFUSA, RESISTENTE, E, POR OUTRO, A IMAGEM, QUE ÀS VEZES PODE TUDO, E MUITAS VEZES NÃO PODE NADA

Benedito Ferreira, ao optar por não criar novas imagens num mundo hiperinflacionário, mas coletar, reusar, ressignificar e ficcionalizá-las, se situa, pensando nos termos de Joan Fontcuberta, na era da pós-fotografia. Ao olhar para as paredes da galeria, nos deparamos com um grande cemitério ativado, individual, mas também coletivo; nos situamos frente a imagens que talvez já não são, mas se resistem a deixar de ser, já que, como reza o slogan na capa de um dos álbuns: “a vida passa, mas sua imagem fica”.

Texto publicado originalmente no Jornal da Universidade Federal de Goiás (UFG).