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Rage Is a Machine in Times of Senselessness (2024), de Frieda Toranzo Jaeger [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
Postado em 27/04/2024 - 1:23
Bienal de Veneza Terra Indígena
Relembre a cobertura da semana inaugural da 60ª Biennale de Veneza, feita pela diretora de redação da celeste e veiculada originalmente no Instagram da revista

O prazer de escutar sonoridades estrangeiras, sem ter ideia de que idioma se trata e perder tempo especulando as possibilidades de suas origens. Esta é a primeira percepção de um viajante que aterriza em Veneza, cidade que desde o começo dos tempos foi campo aberto de comunicação entre povos do mundo. As línguas que ouvimos nos ônibus e nos vaporettos que vêm do aeroporto poderiam ser árabe palestino, tagalog, kiswahili, albanês gheg, shona, ndebele, português timorense ou originárias de qualquer um dos 80 países onde hoje vivem os 331 artistas e coletivos convidados pelo curador Adriano Pedrosa a integrar a mostra Stranieri Ovunque – Strangers Everywhere. Só que não!

Dessa vez, as sonoridades tônicas da 60ª Biennale de Veneza são o kashinawa, o hantxa kuin, o tupi, o baniwa, o nheengatu, o wapishana, o mataasho… O artista indígena é um dos quatro “sujeitos” da curadoria de Pedrosa (que inclui ainda o artista queer, o artista popular e o artista outsider), que quer enfocar os expatriados, imigrantes, diaspóricos, exilados, refugiados, estrangeiros. Mas, para todos os efeitos, os territórios políticos incontornáveis desta edição são o Pavilhão Hãhãwpuá e o mural do mito do jacaré, na fachada do Pavilhão Central do Giardini, pintado pelos integrantes do Movimento de Artistas Huni Kuin (MAHKU). Na foto feita na terça-feira, 16/4, da esquerda para a direita, estão: Cleiber Bane, Pedro Mana, Acelino Tuin, Ibã Huni Kuin, Kassia Borges e Itamar Rios (arquiteto e colaborador do MAHKU).

Artistas do coletivo MAHKU diante do Pavilhão da Itália recoberto por pintura mural do coletivo na Bienal de Veneza [Foto: Carmo Marchetti/cortesia dos artistas]

PROTAGONISMOS DO SUL GLOBAL
Além de a atual Bienal de Veneza, a já histórica edição 60, contar com o maior número de artistas latinoamericanos, africanos, asiáticos, árabes, e artistas do Oriente Médio de toda a história do evento; além de ter a maior presença de artistas brasileiros, colombianos, argentinos, peruanos, guatemaltecos, indianos, sul-africanos, egípcios, iraquianos, maoris de toda a história da Bienal de Veneza; além de esta ser a edição com o maior número de artistas indígenas e artistas queer; a 60ª Biennale de Veneza é histórica no número de patrocinadores do Sul Global.

“A gente tem duas categorias de patrocínio, temos os doadores, que são as agências nacionais, como ministérios de relações exteriores ou ministérios da cultura, que reúnem desta vez um maior número de instituições do Brasil, da Argentina, da África, da Ásia e Oriente Médio; e temos os apoiadores, que são aqueles institutos de fomento, lista em que historicamente predominam financiadores europeus e do Norte Global, onde pela primeira vez temos apoiadores do Brasil, como o Instituto Guimarães Rosa, também temos pela primeira vez apoiado do Qatar, da Arábia Saudita, Cingapura. É uma novidade aqui”, conta Adriano Pedrosa à revista celeste.

SEM MORTE EM VENEZA: GEOPOLÍTICAS DA BIENAL
A Biennale é um instrumento de paz, argumentou Roberto Cicutto, presidente da Biennale di Venezia na introdução da conferência de imprensa na abertura da 60a edição da mostra. “Sabemos como funciona o ódio”, continuou ele. “Em momentos de guerra, não podemos deixar faltar ninguém. Aqui se abre, não se boicota ninguém”. Porém, ele não estava mais na sala do Teatro Piccolo Arsenale quando jornalistas indagaram sobre a posição da instituição sobre os pavilhões dos países em guerra hoje. Não seria necessária a presença do presidente na mesa da coletiva de imprensa para conhecer a posição da instituição. Todas as respostas evitadas são cartas marcadas na configuração dos pavilhões nacionais do Giardini da Biennale este ano.

Pavilhão de Israel é vigiado 24 hs por dia por forças militares, mas teve sua abertura vetada pela própria artista israelense Ruth Patir e curadores de sua exposição solo, que se recusam a abrir a mostra “até que Israel e o Hamas cheguem a um acordo de cessar-fogo” [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
Paula Alzugaray entrevista Adriano Pedrosa após a coletiva de imprensa da Bienal de Veneza, na quarta-feira, 17/4 [Foto: Daniela Labra/celeste]
Folhetos da campanha No Death in Venice [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
SE O CONFLITO É EVIDENTE NA CONFIGURAÇÃO DOS PAVILHÕES NACIONAIS, É CONTORNADO PELO TEXTO INSTITUCIONAL E É SUBLIMINAR NO TEXTO CURATORIAL, É NO “TEXTO” DAS OBRAS QUE O ATIVISMO POLÍTICO SE MANIFESTA

Em guerra contra a Ucrânia desde fevereiro de 2022, quando invadiu o país, este é o segundo ano consecutivo que a Rússia é banida de Veneza. Nesta 60a edição, seu tradicional pavilhão, localizado no boulevard de entrada do Giardini, foi alugado pela delegação da Bolívia. Mais adiante, chegamos à zona de conflito de Israel, cujo pavilhão é vigiado 24 hs por dia por forças militares, mas teve sua abertura vetada pela própria artista israelense Ruth Patir e curadores de sua exposição solo, que se recusam a abrir mostra “até que Israel e o Hamas cheguem a um acordo de cessar-fogo”.

Se o conflito é evidente na configuração dos pavilhões nacionais, é contornado pelo texto institucional e é subliminar no texto curatorial (Adriano Pedrosa afirma e reafirma categoricamente que a sua radicalidade política é o seu foco no Sul Global – e de fato é!), é realmente no “texto” das obras artísticas que o ativismo político se manifesta. O primeiro sinal disso é Rage Is a Machine in Times of Senselessness (2024), de Frieda Toranzo Jaeger, artista mexicana baseada em Berlim. Especular sobre um futuro marcado pela liberdade queer, a comunhão com a natureza e a criação de espaços de prazer e convivência é, segundo o texto-legenda da obra assinado por Amanda Carneiro, a marca dos trabalhos de Frieda Toranzo. Se a arte ainda pode ser pensada como lugar do debate político, o texto aqui é explícito – na pintura e no seu no verso -, aberto à apreciação de quem quer ler todos os lados da história. No verso de seu mural monumental, Toranzo Jaeger faz sua homenagem a Frida Kahlo e sua defesa da Palestina, postulando: “O coração contra a morte do povo”. Leia-se: genocídio.

Detalhe de Rage Is a Machine in Times of Senselessness (2024), de Frieda Toranzo Jaeger [Foto: Paula Alzugaray/celeste]

MAPAS E GEOMETRIAS DO MEDO
Entre as centenas de obras desta 60ª Bienal de Veneza Foreigners Everywhere – curadoria que se debruça sobre os expatriados, os imigrantes, os exilados – os trabalhos de dois artistas africanos me falam mais alto. Especialmente o diálogo improvável que travam entre si.

Nos vídeos de The Mapping Journey Project (2008-2011), de Bouchra Khalili (Casablanca, Marrocos, 1975), é comovente como uma câmera parada, uma edição sem cortes, uma caneta deslizando sobre um mapa e uma voz off, narrando um longo e persistente caminho migratório, pode ter a potência de interromper o fluxo apressado dos visitantes do Arsenale. Como relatos tão econômicos podem atrair escutas tão atentas e abrir toda uma possibilidade de imaginação acerca dos percursos. Realizados com a colaboração de oito refugiados de África Central, África do Norte, Oriente Médio e Sul da Ásia, os vídeos resultam em oito desenhos de The Constellations Series, formados pelos traçados dos mapas. Em cada trajeto, desenha-se uma existência única. Em cada história, porém, repetem-se as palavras: quilômetros, horas, dias, desvios, caminhos paralelos, montanhas, zonas de perigo, meses, documentos.

A poucos metros, Kiluanji Kia Henda (Luanda, Angola, 1979) apresenta três estudos sobre o medo. Como os mapas constelares, Henda também desenha sobre paisagens – não cartográficas, mas fotográficas. Se o caminho do viajante é irregular, desenhando linhas que raramente se fecham em formas (e aqui cito Machado apud Esther Ferrer, caminante no hay camino, se hace el caminho al andar), os grafismos de Henda em The Geometric Ballad of Fear (2015) são geometrias repetitivas das cercas de metal de casas de Angola – e cidades do Sul Global, especialmente do Brasil, onde pesquisas recentes de arquiteturas de matriz afro-brasileira revelam ser variações de adinkras (símbolos gráficos que representam conceitos e aforismos). Já em The Geometric Ballad of Fear (Sardegna) (2019), as mesmas tramas cobrem fotografias em P&B de paisagens do Mediterrâneo, que hoje, ou desde sempre, é zona de conflito, travessia, medo.

O OLIMPO É SUPERFICCIONAL
Encerramos a cobertura das aberturas da 60ª Bienal de Veneza em um passeio por Il Miracolo di Helvetia, instalação de Guerreiro do Divino Amor (Geneva, 1983, vive e trabalha no Rio de Janeiro), no Pavilhão da Suíça, no Giardini, curadoria de Andrea Bellini. Nesta semana olímpica, em que infinitudes de povos se atravessaram em eventos oficiais e colaterais, cabe um último minuto de reflexão sobre como as representações nacionais eurocêntricas tentaram um deslocamento de seu olimpo para se colocar no contexto de uma bienal que celebra o estranho. Guerreiro do Divino Amor, que em sua condição queer e suíço-brasileira traduz no próprio corpo o lugar transitório, construiu um templo superficcional para abrigar as mitologias de um mundo superimperial governado por Helvetia, deusa de duas cabeças – uma cega, muda e apática às convulsões do mundo em torno dela; a outra controladora, megalomaníaca e autoritária.

No complexo panteão de personagens da saga, interagem Silentia, Nidustia, Desideria Remotta, Desideria Patria, Calvinia, Kulma, Gudruna, Friedena – interpretadas por, entre outras artistas, Castiel Vitorino Brasileiro e Lys Parayzo. No pano de fundo, aparece ainda a deusa da Superficção Amazônica, desenvolvida por Divino Amor durante o projeto Amazônia: Uma Residência Editorial, da seLecT_ceLesTe, em 2021. “A Amazônia é o antagônico da Suíça Superimperial, a sede das supergaláxias, que tem a maior diversidade de modelos de civilização”, disse Guerreiro à seLecT, em vídeo postado na seLecTV. O trabalho integra pesquisa em processo desde 2004, sobre mecanismos de totemização da cultura e sobre como instituições e religiões “constroem mitologias sobre si mesmas, influenciando nosso pensamento”. Coroa o projeto no Pavilhão da Suíça, interpretada por Ventura Profana, a deusa Roma Talismano, que, segundo Guerreiro, é “o talismã, a inventora da superioridade da cultura ocidental”. Em nova fase do trabalho, surgirá a deusa Brasília e sua ficção modernista de se tornar a nova Roma classicista.

Encerradas as notas de viagem, aguarde a cobertura crítica no site da revista, por Daniela Labra, Bernardo de Souza e Paula Alzugaray.

VENEZA BONUS TRACK: IBÃ HUNI KUIN E O MITO DO KAPEWË PUKENI
O mito do jacaré-ponte conta a história da travessia dos Huni Kuin entre dois continentes, pelo Estreito de Bering, em busca de sementes, casa, conhecimento e terra. Depois de uma longa caminhada, o grupo se deparou com um jacaré que, em troca de comida, ofereceu ajuda para atravessar para o lado de cá. O retorno (ou alcance de novo território), agora se dá via atividade artística. A arte dos Huni Kuin é a tradução em imagens dos cantos e mirações Huni Meka com o nixi pae. Convidado pelo curador Adriano Pedrosa a integrar a exposição Strangers Everywhere, na 60ª Bienal de Veneza, o MAHKU (Movimento de Artistas Huni Kuin, (Acre, Brasil) pintou o mito do kapewë pukeni na fachada do Pavilhão da Biennale. Em conversa com a revista celeste, Ibã Huni Kuin fala sobre a travessia: “O mito do jacaré vinha assim, povo Huni Kuin queria comer coisa boa, plantas, terra boa. Procurando lugar melhor que nós encontramos esses animais falando. Veio do nosso planeta, jacaré ligado com outro continente. Ele que comanda. Aí nós chegamos na boca do jacaré, e jacaré falou: ‘Quer atravessar? Esse lado já é outro continente. Eu sei que vocês estão querendo atravessar. Mata, dá-me um bocado de comida’. Meu povo escutou. Mataram a caça e entregaram. Então fez essa ponte, trazendo a informação. Essa informação é verdade, é valiosa, todo mundo quer saber. Todo mundo quer encontrar. Hoje agora Huni Kuin abriu um espaço, uma ponte, vários continentes estão se encontrando. Nós estamos falando agora, mundo inteiro. Mundo está descobrindo que o povo Huni Kuin existia (resistia). A língua cura espiritualmente. Essa ponte que estamos fazendo é para a língua formar em mais outro século. Agora faço falar com público diferente. Não é mais segredo. Igual nossos animais: você ensina ele a falar e ele fala. É assim que está mais forte. Agora está ampliado, vai pegar outros séculos a linguagem Huni Kuin”.