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Jardim do ateliê de Ivacy de Souza [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Postado em 12/06/2024 - 5:18
Terra do fogo
Com mapeamento e visitação de 56 espaços autônomos, BSB Plano das Artes apresenta vigor e potência da cena artística do Distrito Federal

“Vocês conhecem o Tropa de Elite? Não o filme, o grupo de rap”, pergunta Gabriel Xavier, o Koba, para os passageiros de uma van lotada a caminho de Ceilândia, uma das 33 Regiões Administrativas do Distrito Federal. Ninguém tinha ouvido falar na banda liderada por Marquim do Tropa, rapper, cineasta e ator que ganhou o troféu candango de Melhor Ator no Festival de Brasília de 2014 pelo documentário Branco Sai, Preto Fica (2014), dirigido pelo também ceilandense Adirley Queirós. 

“E em Ceilândia, vocês já estiveram?”, continuou Koba. Respostas negativas ou reticentes vieram dos passageiros da van, que na tarde do sábado, 8/6, saiu do Museu Nacional da República, no SCS (Setor Cultural Sul) do Plano Piloto de Brasília, e circulou por Brazilândia, Ceilândia, Taguatinga, Guará e terminou no SHIP Asa Sul (Setor Hospitalar Indústria e Abastecimento Sul), em Brasília. Denominado Rota Azul, este foi um dos circuitos programados da 4ª edição do BSB Plano das Artes. 

A experiência da cidade por meio da visitação de seus centros culturais, ateliês e galerias – e do contato direto com artistas, mediadores, curadores, críticos, galeristas e produtores – é um grande legado deste projeto de mapeamento dos espaços de arte autônomos do Distrito Federal e formação de público para a arte contemporânea, idealizado e organizado pela curadora Cinara Barbosa desde 2018. 

Chegar na Praça do Cidadão, em Ceilândia – seja pela primeira, segunda ou terceira vez –, encontrar um grupo dançando no coreto e saber que eles integram um projeto chamado Jovem de Expressão (JEX), que há 15 anos oferece ali cursos e atividades formativas gratuitas de teatro, VJ, DJ, danças urbanas, operação de drone, audiovisual, podcast, idiomas… além de promover editais, festivais, cursinho preparatório para vestibulares e roda de terapia, é algo muito estimulante. Descobrir que a galeria de arte e o galpão multiuso do JEX ocupam hoje um posto abandonado da PM torna a experiência ainda mais gratificante, a melhor representação de como a cultura pode ser restauradora de dignidade. 

Na sala multiuso, um grupo produz um clipe. Na Galeria Risofloras, a artista e grafiteira Nanda Kalm, de 19 anos, apresenta sua primeira exposição individual, intitulada Rua dos Sonhos. “Ocupar a rua me coloca em um estado de fantasia; os trabalhos mostram como esse espaço, que pode ser inóspito para uns, é um portal para outros”, diz Kalm.

Gu da Cei, artista e curador da Galeria Risofloras, com a artista e grafiteira Nanda Kalm em sua primeira individual, Rua dos Sonhos [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
“Apesar de Ceilândia ser a mais populosa do DF, esta é a única galeria de arte contemporânea da cidade, o que evidencia uma centralização dos espaços culturais no Plano Piloto”, diz Gu da Cei, artista e curador da Galeria Risofloras. “Ceilândia nasce de uma campanha de erradicação de invasões – por isso CEI –, um projeto segregacionista, que afastou 80 mil pessoas que viviam em Brasília, na região onde é hoje o Museu Vivo da Memória Candanga, para fazer ali um setor de mansões”.

Obra de Nanda Kalm exposta na Galeria Risofloras [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Do lado esquerdo, fachada do projeto JEX [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Do lado direito, fachada da Galeria Risofloras [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

ROTA AZUL

A parada seguinte é Taguatinga, conurbada à Ceilândia pelos setores M Norte e L Norte. A Galeria Olho de Águia, em Taguatinga Norte, divide o espaço com cineclube, sinuca, jukebox, biblioteca de fotografia, sebo de vinis e o Bar Faixa de Gaza, todos sob a capitania do premiado fotojornalista Ivaldo Cavalcante. Do alto de seus 32 anos de fotojornalismo – sete no Correio Braziliense, oito no Jornal de Brasília e 16 no Hoje em Dia –, Cavalcante fundou em 2002 esse projeto polifônico e arrojado que abarca também o Imagem Sem Fronteiras, trazendo periodicamente à Taguatinga, em corpo presente, os maiores fotógrafos de guerra da atualidade. Já passaram por ali o iraniano Afshin Ismaeli, o sérvio Goran Tomasevic, os brasileiros André Liohn e Walter Firmo, entre tantos. 

“É um barzinho punk rock”, define Cavalcante, saindo de trás das cortinas vermelhas para nos receber e contar sobre a intensa programação noturna semanal, como os projetos Voz e Violão, o Cineclube Praça do Relógio, o Palco e Caverna para Músicos Autorais, e o Artistas do Bairro, que a cada 15 dias recebe exposições de artistas de todas as regiões administrativas do DF, praticantes de todas as linguagens artísticas.

Fotojornalista Ivaldo Cavalcante, que dirige o espaço da Galeria Olho de Águia [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

Quem visita a Olho de Águia durante o Plano das Artes, em circuito até 18/6, encontra as paredes da galeria plotadas com imagens arrebatadoras da fotógrafa estadunidense Andrea Bruce, que cobre o impacto social em áreas de conflito do Iraque e Afeganistão. Autora da coluna semanal Iraque Invisível, no jornal The Washington Post, onde trabalhou como fotógrafa por 8 anos, a artista participa de encontro na sexta-feira, 14/6, no espaço.

Um pouco mais a sudeste, na grande periferia de Brasília, chegamos ao Guará, região administrativa que teve suas primeiras moradias construídas em 1967, em mutirão, por trabalhadores da Novacap, a companhia urbanizadora da Nova Capital do Brasil, criada em 1956 por Juscelino Kubitschek. Em um espaço lindamente adaptado para a função de galeria-escola, com terraço e áreas multiuso, sob uma oficina mecânica e guincho, encontramos A Pilastra, que se auto-define como um ecossistema de arte dedicado à formação e produção cultural de diversas linguagens artísticas. Com um sistema original de sustentabilidade que abordamos na matéria sobre a cena independente do Centro-Oeste na ocasião da Fargo24, A Pilastra abriu no sábado, 8/6, a ILHÓ, 3ª edição da mostra de novus artistas, em cartaz até 29/6. Com Alexandre Luna, Altimar Rocha, Ayô, Henrique Farage, Jumi, Mariana Vidal, o Santo inimigo do mal, Samuel Araújo e vitória reis, a coletiva traz à luz as primeiras manifestações de jovens artistas em formação, muitos ainda graduandos no curso de artes visuais da UnB.

Bola-Bandeira (2023), de Henrique Farage, exposta nA Pilastra [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Bola-Sombra (2024), de Henrique Farage, exposta nA Pilastra [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

No fundo, exposição fotográfica, e à frente, publicações sendo folheadas sobre mesa de sinuca na galeria Olho de Águia [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Fachada de A Pilastra, embaixo de uma oficina mecânica [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Vernissage nA Pilastra [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

PLANO PILOTO

De volta à cidade alfabeto Brasília, entre as vias W3 e a W4, na Asa Norte, está ancorado oBarco, estúdio de 14 artistas dedicados a estudos e produção de fotografia, que na 4ª edição do Plano das Artes foi convidado por Cinara Barbosa a abrir uma área expositiva. A exposição W3 e Meio inaugura nova vocação do espaço, abrindo-se para diálogos com outros artistas e a cidade. A alguns quarteirões dali, ainda na Asa Norte, setor do Plano Piloto desenhado por Lúcio Costa para receber edifícios urbanos residenciais em superquadras, fica o espaço de microcuradorias DeCurators. Dirigido por Gisel Carriconde Azevedo, o espaço tem duas galerias com projetos super experimentais em arte sonora, performance e instalação. Na galeria do térreo, a mostra Pintura como Cor tem participação de Ralph Gehre, João Trevisan, Glênio Bianchetti, Daiara Tukano, entre outros. Recém-inaugurada em maio, onde antes funcionava uma massagem erótica, a galeria do subsolo abriu preservando a ambiência de inferninho com a mostra Sala 22 SUBDECU (vulgo deCuzinho), com instalações site specific de Gu da Cei, Biophilick, Raquel Nava e Julio César, ocupando as salinhas de massagem. 

Instalação site-specific na Mostra Sala 22 SUBDECU (vulgo deCuzinho) [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Instalação site-specific de Gu da Cei na Mostra Sala 22 SUBDECU (vulgo deCuzinho) [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
No CLN (Comércio Local Norte), são quase vizinhos projetos de naturezas múltiplas como a Referência, uma das mais antigas galerias de arte da cidade; a Oto Reifschneider Galeria e Escritório de Arte (e Oto Livraria); e o Ateliê Kena, a base de Naine Terena e Gustavo Kaboco Wapixana no DF, que agrega também a Livraria Maracá, especializada na produção literária indígena. “Temos um vazio de conhecimento sobre os povos indígenas na contemporaneidade, então a literatura é um ponto de referência para a circulação de narrativas terenas, macuxis, wapichanas…”, diz Naine Terena.

Interessado pela tradição gráfica da arte brasileira, o galerista Oto Reifschneider dedica-se ao garimpo de preciosidades no grande panteão do esquecimento da nossa história. Além de trabalhar com o mercado secundário, organiza publicações e exposições institucionais de artistas como a gravadora, pintora e figurinista Isabel Pons, que Reifschneider observa ser, ao lado de Fayga Ostrower, a artista mais premiada da gravura brasileira e sobre a qual organiza, para março de 2025, uma mostra no Centro Cultural Câmara dos Deputados. Na livraria, o garimpo soma fartas prateleiras de livros e revistas em quadrinhos. 

Obras expostas no estúdio oBarco [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Gisel Carriconde Azevedo, diretora do espaço DeCurators [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

Na passagem pelo SHIS (Setor de Habitações Individuais Sul), a Rota Verde tem paradas em galerias de arte com representatividade no mercado nacional, a Galeria Karla Osorio e a Cerrado Galeria, aberta em maio de 2023, em Goiânia, e em maio de 2024, em Brasília, iniciando um projeto arrojado de profissionalização do mercado de arte do Centro-Oeste. A Cerrado brasiliense apresenta Figuras de Pedra e Figuras de Papel, uma conversa entre Estêvão Parreiras (nascido em MG, residente em Goiânia) e Paulo Pires (Rondonópolis, MT) que, segundo texto do curador Divino Sobral, “debate sobre a arte brasileira contemporânea produzida no centro e na borda do Brasil”. 

Galeria Cerrado [Foto: Divulgação]
Galeria Cerrado [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

No SCS (Setor Comercial Sul), uma das áreas mais antigas da cidade, com edifícios da mais genuína arquitetura moderna, projetados pelas equipes da Novacap, hoje em processo de se tornar cult, fica a Galeria Índex, instalada no térreo do icônico Edifício Morro Vermelho, desenhado por João Filgueiras, o Lelé, em 1974. A galeria apresenta a exposição A Maior Metade, com obras de Paulo Whitaker e de Virgílio Neto, mas também trabalhos realizados pelos artistas em colaboração, desafiando o território da autoria e atingindo um resultado interessantíssimo. Em prédio nos arredores, a galeria mantém salas para residências artísticas, hoje ocupadas por Ralph Gehre (DF) e Azul Rodrigues (DF). 

Azul Rodrigues, em residência da galeria Índex [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Ralph Gehre, em residência da galeria Índex [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
SOBRE O FOGO

De caminho para a colonial Planaltina, a mais afastada das regiões administrativas, distante 28,5 quilômetros do Plano Piloto, passamos pelo ateliê de Ivacy de Souza, na região de Contagem, Sobradinho. Ao lado do ateliê, a galeria ManoObra, criada em 2017 por um grupo de amigos que inclui Bené Fonteles e Glênio Bianchetti, tem atividades voltadas à convivência artística e apresenta uma mostra que discute a antiguidade do solo do Planalto Central, formado por rochas de 700 a 1.400 milhões de anos.

Fachada do edifício Morro Vermelho, de onde vemos o espaço da galeria Índex [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Ainda não (2023), de Virgílio Neto, na exposição A Maior Metade da galeria Índex [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

No fim de semana de 14, 15 e 16/6, Camila Soato abre, em seu ateliê rural em Sobradinho, a exposição El Bar Periquitón. Localizado nos arredores da torre de TV digital, que parece uma flor futurista do Cerrado e é o último projeto de Niemeyer, o encantador ateliê-casa-bar, projetado pela artista, é inaugurado durante este Plano das Artes com uma exposição de obras recentes que inclui telas de uma série sobre atos incendiários a monumentos colonialistas. Inspirada no ato do grupo Revolução Periférica, que em 2021 queimou o Borba Gato, em São Paulo, a série aborda também a estátua de Anhanguera e o Monumento às Bandeiras, que Soato evoca com a representação de um Boitatá, em comovente homenagem à instalação de Jaider Esbell no lago do Ibirapuera, durante a Bienal de São Paulo, em 2021.

Ateliê rural de Camila Soato [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Visão interna do ateliê [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

Retrato da artista Camila Soato sob sua obra [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Uma das obras de Camila Soato na exposição El Bar Periquitón [Foto: Paula Alzugaray / celeste]

Finalmente, em Planaltina, o Pé Vermelho, lugar de formação e produção de artes com foco em artistas cerratenses e não-sudestinos, apresenta a mostra coletiva Exúvia, com performances, instalações e esculturas de Alice Yura (MS), Isadora Jochims (DF) e Likidah (DF), sobre corpo e relações de gênero. A curadoria é do grupo Pé Vermelho e Gisele Lima, coordenadora d’A Pilastra. 

Registro da mostra Exúvia, com Alice Yura, Isadora Jochims e Likidah na Pé Vermelho [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Os aprendizados sobre a arte, a cultura e o bioma do Centro-Oeste culminam na visita ao ateliê do artista João Angelini, um dos quatro integrantes do grupo Pé Vermelho, que nos fala sobre o fascinante sistema auto-generativo do Cerrado. Sua série Suberinas (2024) faz a representação da flora local, desenhando com as cinzas das cascas das árvores que queimam por fatores naturais.

Originado por descargas elétricas ou combustão espontânea, o fogo é responsável pela distinção vegetal do bioma. O aspecto retorcido de suas árvores e arbustos é consequência da ocorrência do fogo e as cascas espessas dos troncos funcionam como um mecanismo de defesa às queimadas. O fogo contribui para a germinação de sementes e assim o Cerrado se restaura e regenera permanentemente.

Suberinas (2024), de João Angelini [Foto: Paula Alzugaray / celeste]
Performance de Alice Yura sendo escaneada por João Angelini [Foto: Paula Alzugaray / celeste]