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The Mapping Journey Project (2008-2011), de Bouchra Khalili [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
Postado em 02/05/2024 - 5:24
Um curador historiador na Bienal do capitalismo 4.0
Com vigoroso projeto de descolonização da história da arte, 60ª Bienal de Veneza tem agenda política colateral

Terça-feira 23/4. Crianças e jovens estudantes caminham em filas barulhentas e desorganizadas pela Fondamenta de L’Arsenal. Quando visitarem a mostra internacional da 60ª Bienal de Veneza, em exibição no Arsenale e no Pavilhão Central dos Giardini, muitos vão encontrar reflexos de suas próprias histórias familiares de imigração, exílio, diáspora. Com 331 artistas de 80 países, a exposição Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere [Estrangeiros em Toda Parte] tem, como endossa o curador Adriano Pedrosa, a maior presença de artistas latino-americanos, africanos, asiáticos, árabes e do Oriente Médio na história da Bienal.

Pedagogias descoloniais: esse é o projeto político da 60ª Biennale. “Falta descolonizar o século 20”, afirma Pedrosa à celeste. “Já existe uma internacionalização grande da arte contemporânea há mais de 20 anos, então é importante trabalhar a internacionalização dos artistas do Sul Global do século 20. Pensando no que é uma descolonização de uma história da arte, falta descolonizar o século 20”. A reunião desses modernismos do Sul Global no Pavilhão Italiano dos Giardini é inspirada na Bienal de São Paulo e sua noção de “núcleo histórico”, que foi vigente de 1951 até 2002. Se, no início do século 21, a curadoria da Bienal de SP extingue a noção colonialista de núcleo histórico como pedagogia imperialista, é significativo que, em 2024, Pedrosa faça o movimento contrário na Itália, como quem diz que agora são eles que precisam se educar e se instruir sobre a história que desconhecem.

É coerente, então, que o segmento dedicado a questionar as hierarquias da história da arte ocidental traga artistas conhecidos (ou até bem pouco) em seus países de origem, mas não no panorama internacional. Ao lado daqueles em certa medida já canonizados, como Tarsila do Amaral, Frida Kahlo e Wifredo Lam, estende-se uma diversidade de outras realidades históricas, expressas nas obras de Anna Maria Maiolino, Nil Yalter – as duas vencedoras do Leão de Ouro pelo conjunto da obra –, Yêdamaria, Aref el Rayess, Santiago Yahuarcani, Philomé Obin, Hamed Ewais,Mohamed Issiakheim, Kadhim Hayder, Raquel Forner…, em montagens polifônicas como as que Pedrosa vem exercitando em seus dez anos de direção artística do Masp.

Percebe-se, no entanto, tanto no núcleo histórico quanto no contemporâneo, um partido binário entre a figuração e a abstração, que torna a curadoria não exatamente disruptiva das estruturas identitárias e dos critérios de interpretação do cânone ocidental. Ainda que o texto curatorial afirme que o que está em jogo aqui não é a representação, mas a crise da representação, faltaria especular sobre o que estaria além da ideia dogmática de modernismo, o que teriam sido suas equivalências ou antíteses nos outros cantos do planeta.

Indo e Vindo (2004), da série Terra Modelada (1993-2024), de Anna Maria Maiolino [Foto: Daniela Labra]
Exile is a Hard Job (1977–2024), de Nil Yalter [Foto: Paula Alzugaray/celeste]

Entende-se que uma curadoria seja feita de recortes, portanto escolhas. Mas, se o grande tema da exposição é o estrangeiro (da etimologia, estranho), onde estão, especialmente no núcleo contemporâneo, as linguagens estrangeiras à pintura figurativa e abstrata? Onde está a condição migrante da imagem? Onde estão xs monstrxs, a imagem digital, a inteligência artificial, os dispositivos de linguagem que elas abrem? Se estamos falando de margens, o projeto deixa à margem uma fronteira fundamental da arte: o fim da linguagem.

Há, claro, Manauara Clandestina, cujo vídeo Migranta (2020-23) é uma colagem de imagens de celular, de arquivo, alta e baixa tecnologia, que em certa medida assimila a internet como espaço de construção e comunicação da identidade. São exceções. Inevitável aqui esbarrar no comentário do crítico Sean Burns, da revista Frieze, de que se você aterrissasse na Bienal vindo do espaço sideral, pensaria que a internet não havia sido inventada.

 

 

Acervo 290, concreto 18 (1954), de Judith Lauand, e Sunset (1968), de Samia Osseiran Junblatt [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
Acima à esquerda, The Conversation (1981), de Barrington Watson. Abaixo, Thalathat Ashkhas Raqm 20 (1970), de Kadhim Hayder. À direita, Femme et Mur (1977-78), de Mohammed Issiakhem. [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
À esquerda, Autorretrato (1941), da série El Drama, de Raquel Forner. À direita, de cima para baixo: Autorretrato (1943), de Saloua Raouda Choucair; Autorretrato (1947), de Gerard Sekoto e Autorretrato (1946), de Georgette Chen [Foto: Paula Alzugaray/celeste]

CONFINAMENTO
Para além da pintura, da escultura e da tapeçaria – linguagens clássicas predominantes –, temos poucos e bons trabalhos em vídeo que trafegam sempre pelo campo geopolítico para demonstrar como o passado colonial se perpetua nas lógicas contemporâneas. O documentário Gaddafi in Rome: Anatomy of a Friendship (2024), de Alessandra Ferrini, conta histórias de colonização e capitalismo, disfarçadas de democracia e diplomacia. Disserta sobre como atuais políticas migratórias do Mediterrâneo foram redesenhadas a partir das relações escusas e do tratado de “amizade, parceria e cooperação” entre Itália e Líbia, assinado pelos então chefes de Estado Muammar Gaddafi e Silvio Berlusconi, em 2008.

Personal Accounts (2024), de Gabrielle Goliath [Foto: Paula Alzugaray/celeste]

Outros trabalhos abordam as violências patriarcal, colonial ou moderna de forma menos literal. Na videoinstalação Personal Accounts (2024), da sul-africana Gabrielle Goliath, testemunhos de pessoas pretas, indígenas, queer ou não binárias são editados para tornar suas falas ininteligíveis: com o corte no ato da sílaba inicial, com a repetição de um erro de dicção, seus textos tornam-se escorregadios e indecifráveis. Já The Mapping Journey Project (2008-2011), de Bouchra Khalili, é uma videoinstalação multicanal composta por oito vídeos realizados com uma câmera parada e um só plano sequência que mostra uma caneta deslizando sobre um mapa; uma voz em off narra o longo e persistente caminho migratório. Nas falas de oito refugiados sobre suas rotas de fuga de cidades em África Central, África do Norte, Oriente Médio e Sul da Ásia, em direção à Europa, Khalili consegue abrir múltiplas brechas e possibilidades de imaginação acerca desses percursos. Muito reflexivo.

Percebe-se na exposição internacional Foreigners Everywhere, um certo confinamento da reflexão política aos trabalhos que apontam para a relação entre como as violências do passado fabricam as relações do presente. Contudo, no atual contexto generalizado de censura institucional sobre o que pode ou não ser dito publicamente a respeito de assuntos “sensíveis” como as guerras contemporâneas, o grande drama humanitário do momento, a morte de mais de 30 mil civis palestinos em seis meses de guerra, é um subtema no texto geral da Biennale.

Detalhe de The Mapping Journey Project (2008-2011), de Bouchra Khalili [Foto: Paula Alzugaray/celeste]

Não assumido publicamente – nenhuma resposta foi dada pelo presidente da Biennale aos jornalistas presentes na coletiva de imprensa acerca do posicionamento da instituição frente aos países em guerra –, o debate político se infiltra em subtextos ou protestos colaterais. Dentro da exposição no Arsenale, o statement pró-Palestina se dá no mural Rage Is a Machine in Times Senseless (2024), da mexicana Frieda Toranzo Jaeger. Nos interstícios de uma homenagem à poeta Safo da ilha de Lesbos (c. 630-604 BCE), de remissões à sensualidade, o sexo e o prazer, o mural de Toranzo Jaeger faz, nas representações de melancias, uma homenagem à resistência palestina. Desde que a bandeira foi criminalizada pelo governo israelense, palestinos veiculam imagens da fruta que tem as cores da bandeira – vermelho, preto, verde e branco – para driblar a proibição.

BIENAL DO CAPITALISMO 4.0    
As manifestações políticas mais contundentes se deram via infiltração, em atos não autorizados, digamos assim. Por exemplo, na decisão da artista Ruth Patir de não abrir o pavilhão nacional de Israel “até que o cessar-fogo e a libertação de reféns sejam acordados”; ou na panfletagem do folheto “Sem Morte em Veneza – No To The Genocide Pavilion”, campanha ecoando protestos pelo boicote do pavilhão de Israel na Biennale, muito embora, como pontuado por Jason Farago, do The New York Times, “com pouca aderência no carnaval veneziano regado a prosecco da semana de abertura”.

Veneza é o ponto alto da arte-ostentação global. É a multiplicação à máxima potência do domínio das leis do mercado sobre as instâncias da vida e da arte. Um sintoma dessa condição foi o escalonamento dos convites para os dias de abertura – parte da estratégia de blindagem da informação, que se torna cada vez mais sofisticada, para que as instituições mantenham a hegemonia da narrativa sobre suas práticas. Diferentemente de anos anteriores, a maior parte dos jornalistas não teve acesso ao pré-preview, na terça-feira, 16/4, para doadores, colecionadores, galeristas, convidados uberespeciais – entre eles, representantes do jornalismo do centro do mundo, claro. Como nas feiras de arte, foi conferido ao poder aquisitivo o passe especial para o privilégio da compra. Em resultado, as primeiras impressões da Biennale foram regadas a prosecco. “Pensar? Pra que? Isso é coisa do século passado!”, comenta a crítica Daniela Labra.

Cardume (2024), de Ziel Karapotó [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
O escanteamento da imprensa é flagrante. Se estamos falando de um projeto curatorial e político que deseja reverter a lógica do conceito de arte do centro para as periferias, desorientar a história e “identificar novos pontos cardeais” no Sul Global, isso não deveria ser levado a cabo sem a facilitação da participação das mídias regionais e dos formadores de conhecimento desse mesmo Sul Global.

Equilíbrio (2024), de Olinda Tupinambá [Foto: Paula Alzugaray/celeste]
O público brasileiro, a Biennale di Venezia e o Pavilhão Hãhãwpuá – como o Pavilhão do Brasil foi renomeado nesta edição, para receber exposição de Glicéria Tupinambá e convidados, com curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana – teriam se beneficiado com uma cobertura realizada por veículos de mídia indígena, por exemplo. Se os comunicadores indígenas do Brasil – entre eles os coletivos Mídia Indígena, Rede Wayuri e Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro – tivessem sido oficialmente convidados pela Fundação Bienal de São Paulo a realizar a cobertura sobre o Hãhãwpuá, como a celeste apurou que era a intenção dos curadores, certamente teríamos nesta 60ª Bienal de Veneza outras camadas de diversidade de pensamento e discernimento.

Mas, afinal, por que o nome do Pavilhão Hãhãwpuá não está escrito na fachada?

 

Okará Assojaba (2024), de Glicéria Tupinambá [Foto: Paula Alzugaray/celeste]