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Bernardo Mosqueira, na exposição Pepón Osorio: My Beating Heart/ Mi corazón latiente, no New Museum, em Nova York [Foto: Da Redação/Paula Alzugaray]
Postado em 21/07/2023 - 4:40
Bernardo Mosqueira: “Questionar o lugar que a colonialidade reservou para a América Latina”
Primeiro curador chefe do Institute for Studies on Latin American Art [ISLAA], em NY, e diretor artístico do Solar dos Abacaxis, no Rio, fala sobre seus modos de atuação contra, anti e para-institucionais

A diferença de horário entre Rio de Janeiro e Nova York, no verão do hemisfério Norte, é de 1 hora. No inverno, é maior. Com essa vantagem temporal, o carioca Bernardo Mosqueira pode amanhecer trabalhando no Rio e entardecer em NY. Ativo e presente em projetos do Solar dos Abacaxis, que fundou em 2015, em sua cidade natal, Mosqueira atuou nos últimos dois anos como curador residente do ISLAA [Institute for Studies on Latin American Art], no New Museum, de Nova York. Por meio desse projeto de fomento a curadores emergentes dedicados à arte latino-americana e latinx, ele participou de uma dezena de exposições, integrou o time curatorial da quinta edição da Trienal do New MuseumSoft Water, Hard Stone, e curou solos de artistas como Daniel Lie, Vivian Caccuri, Naomi Rincón Gallardo e, em cartaz no museu até 17/9, a peruana Wynnie Minerva e o porto-riquenho Pepón Osório.

Seu engajamento com o ISLAA se consolida agora, ao ser apontado como o primeiro curador-chefe do instituto, sediado em NY e dedicado a aumentar a visibilidade e a valorização da arte latino-americana globalmente. “ISLAA é uma instituição que está operando no campo das disputas simbólicas, e bastante materiais também, dentro de um sistema global que foi estruturado pela colonialidade para distribuir de maneira desigual violências e recursos”, diz à seLecT_ceLesTe, nesta conversa realizada durante uma visita às suas curadorias no New Museum, e em que fala sobre os desafios da posição que passa a ocupar.

Vista da exposição Wynnie Mynerva: The Original Riot, curadoria de Bernanrdo Mosqueira no New Museum, em Nova York [Foto: Dario Lasagni/New Museum]
Scene of the Crime (Whose Crime?) (1993), de Pepón Osorio, curadoria de Bernardo Mosqueira no New Museum

seLecT_ceLesTe: Você estava me contando que o ISLAA surgiu em 2011, como a seLecT, né? Mas nunca teve um curador-chefe. O que esse novo cargo traz para o instituto?
Sim, é um cargo novo. O ISLAA [Institute for Studies on Latin American Art] é uma instituição cuja missão é aumentar a visibilidade e a valorização da arte latino-americana globalmente, sobretudo por meio do apoio a  pesquisas que repensam as narrativas mais convencionais sobre a arte produzida nessa região. O ISLAA está construindo uma sede nova em Tribeca, bem maior e mais central na cidade, com abertura programada para ainda este segundo semestre, expandindo as possibilidades de atuação da instituição diretamente com o público. O cargo de curador-chefe foi criado em função desse momento de expansão do ISLAA.

Como esses apoios se formalizam? Em exposições, publicações, como elas se desenvolvem?
O ISLAA tem cinco frentes de atuação. A primeira delas é o apoio à pesquisa. Além de financiar e apoiar projetos de pesquisa diretamente, o ISLAA também oferece acesso a materiais físicos e digitalizados de sua Biblioteca e Arquivos, um acervo muito importante e que segue sempre em expansão. São bolsas, prêmios e fellowships, além de residências para escritores, pesquisadores e designers. A segunda frente de atuação são as exposições. O ISLAA tem um longo histórico de apoio a exposições importantes em outras instituições e, mais recentemente, passou a focar mais também na produção de exposições próprias, baseadas na coleção e nos arquivos da instituição. Para além do programa de exposições na atual sede, no Upper East Side, já estão sendo preparadas mostras para o novo espaço, em Tribeca. A terceira forma de atuação são as publicações. O ISLAA apoia um grande número de livros acadêmicos e monográficos e mantém uma série de publicações próprias, incluindo a revista Vistas, e as pequenas publicações que acompanham as nossas mostras, além de uma série de livros de teoria e de crítica sobre diferentes aspectos da arte latino-americana. E tem a coleção, que também é bastante impressionante e sempre em expansão…

"O ISLAA tem um longo histórico de apoio a exposições importantes em outras instituições e, mais recentemente, passou a focar mais também na produção de exposições próprias, baseadas na coleção e nos arquivos da instituição"

Mas é uma coleção de obras ou documentação?
Os dois. Existe a biblioteca, os arquivos e existe a coleção. Uma, de alguma forma, acompanha a outra. Essa coleção é bastante abrangente… tanto em termos de número quanto em termos de complexidade. É uma coleção equiparável a de um museu de porte entre médio e grande. 

Como são constituídos a biblioteca e os arquivos do ISLAA?
São papéis, documentos, cartas, registros históricos, efêmera, e um grande acervo de artes gráficas, sobretudo ligado à arte moderna e contemporânea da América Latina. Há alguns conjuntos que são arquivos inteiros de artistas ou instituições, materiais que o ISLAA se esforça em tratar, organizar e tornar acessível. Isso é uma parte importante. Nesse momento está investindo bastante na digitalização deste arquivo, para que possa ser de fácil acesso para pesquisadores em qualquer lugar da América Latina e do mundo. 

As obras da coleção foram doadas ou adquiridas?
Sobretudo adquiridas. Algo importante é que o ISLAA com regularidade oferece obras de nosso acervo por meio de doações a museus e recentemente começou a fazer parte do Museum Exchange, a primeira plataforma digital para doações de obras de arte. As doações e empréstimos fazem com que instituições possam expandir e complexificar suas narrativas e aumentam as oportunidades de pesquisa sobre arte latino-americana. De alguma forma, isso está ligado também à quarta frente de atuação do ISLAA, que são as parcerias. A instituição apoia e colabora com dezenas de universidades e instituições de arte – como Columbia, NYU, CCS Bard, University of Texas, New Museum etc. – para promover exposições, seminários, cursos, bolsas de estudos, oficinas e outras formas de intercâmbio intelectual. Por meio dessas parcerias, nos últimos anos o ISLAA participou de projetos importantes em um número bastante significativo de universidades e museus estadunidenses  e internacionais, como, por exemplo, RADICAL WOMEN: LATIN AMERICAN ART, 1960–1985, no Hammer Museum [que depois seguiu para o Brooklyn Museum e Pinacoteca de São Paulo] ou a 57ª Bienal de Veneza, entre outras. Além disso, financiou ou colaborou com mais de 40 publicações nos últimos anos, sejam iniciativas próprias – do braço editorial –, seja por parcerias com outras instituições como, por exemplo, o Americas Society, em NY, o Kunstinstituut Melly em Rotterdam, ou a Duke University Press, em Durham. Esse é o quinto ponto: as publicações. 

At Sunrise (2015), de David Lamelas, na exposição Eros Rising, curadoria de Bernardo Mosqueira no ISLAA [Foto: Arturo Sánchez/Cortesia do artista]
Sem título (1976), de Oscar Bony, na exposição Eros Rising [Foto: Arturo Sánchez/ISLAA]

E qual a função agora do curador-chefe diante dessas cinco frentes de atuação?
Durante esses primeiros dez anos, a instituição focou sobretudo em apoiar projetos que aconteciam em outras instituições ou em parceria com outras instituições. Nos últimos dois anos, passou a investir mais nas suas programações próprias. O processo de construção da nova sede é muito importante e simboliza um movimento de, de fato, querer se aproximar mais diretamente de um público, inclusive de formar o próprio público. A partir do momento em que se tem uma instituição com um espaço maior e mais central na cidade, a necessidade de um curador-chefe ficou mais evidente. Até então, o ISLAA vinha convidando curadores para pesquisar partes específicas da coleção, resultando em exposições das mais diversas. Eros Rising: Visions of the Erotic in Latin American Art, por exemplo, aconteceu dessa forma. Chegamos juntos nessa ideia de fazer uma exposição que investigava a ideia de erotismo e as formas de de imaginar o erótico na arte latino-americana; convidei o Mariano [López Seoane] pra trabalhar comigo, que é um escritor e curador argentino incrível, pesquisador de gêneros e sexualidade, professor em Buenos Aires e aqui na NYU. Nós juntos desenvolvemos essa exposição, que reuniu cinco artistas da coleção com outras cinco artistas que tiveram obras comissionadas e, então, adquiridas. O convite para ser curador-chefe do ISLAA surgiu muito da experiência dessa mostra. Acredito que, agora, serão três as principais funções da minha posição. A primeira vai ser desenvolver o programa de exposições na nova sede, que tem abertura prevista para outubro. A segunda vai ser colaborar com as equipes e redes do ISLAA no sentido de expandir a coleção e biblioteca e arquivos, com a intenção de trazer cada vez mais diversidade para esse acervo, representando, cada vez melhor, a multiplicidade de formas de viver, de pensar, de sentir e de criar cultura que a América Latina abarca. E, a terceira, vai ser a estratégia institucional, que é algo que me interessa muito: pensar outras formas de práticas institucionais que possam dar conta de projetos éticos, que a simples reprodução de modelos institucionais que já existem não consegue.

 

Sem Título, da série We The Enemy (2019), de Carlos Motta, na exposição Eros Rising: Visions Of The Erotic In Latin American Art [Foto: Reprodução / ISLAA]
Por exemplo?
Como eu comecei a trabalhar muito cedo, cresci com uma geração um pouco mais velha do que eu. Esses artistas e coletivos responderam às suas insatisfações em relação ao sistema das artes de então com uma série de propostas contra-institucionais, anti-institucionais e para-institucionais, que eram bastante radicais, fortes e influentes, ainda que quase sempre tenham sido bastante efêmeras. Foi muito interessante poder me formar nos ateliês, ações e reuniões desses artistas, porque sinto que eu herdei deles esse interesse por pensar a plasticidade das estruturas do sistema institucional. Eu me sinto, de alguma forma, pertencendo à passagem ou à intercessão entre esses artistas e a geração mais nova à minha, que, salvas exceções, parece estar mais interessada em trocar os agentes atuantes nos modelos institucionais já existentes do que propor de fato novas formas de organizações – o que, sem dúvida, também é uma tática importante, ainda que, claro, seja bastante diferente. O Solar [dos Abacaxis] é fruto direto desse descontentamento com o sistema da arte, mais precisamente da percepção de que havia alguns tipos de artistas e de práticas artísticas que não tinham nem espaço e nem interlocução cuidadosa dentro dos museus, galerias comerciais e espaços de arte de então.
O Solar nasceu do desejo de experimentar novas formas de prática curatorial e institucional, que possam servir ao fortalecimento de artistas e de suas práticas. Eu acho que o ISLAA, de alguma forma, também nasceu sem a intenção de reproduzir um modelo institucional já existente. Não é um museu, não é uma galeria, não é só uma coleção, nem só uma editora. É, de fato, uma organização complexa e única que se funda a partir de um programa ético, de uma forma de estabelecer relações, de um propósito bastante claro e importante: lutar por mais espaço, mais atenção e mais recursos para artistas latino-americanos.

Foi fundado por latino-americanos?
Sim, o ISLAA foi fundado por um filantropo argentino apaixonado por arte latino-americana que é o Ariel Aisiks. A partir dele, essa grande rede de relações foi se formando.

E o que você traz do Brasil e do Solar?
Acho que tem duas principais coisas que eu trago da experiência de trabalhar no Solar e de trabalhar no Brasil. Uma delas é o fato de que o Rio e o Brasil são contextos muito complexos, cheios de dobras e de conflitos. Trabalhar como curador e pesquisador no Brasil é lidar com uma diversidade muito grande de linguagens, experiências, de formas narrar, de imaginar, de ver, de sentir. E acredito que, para uma posição como essa que eu passo a ocupar agora, é muito importante a noção de que contextos são formados por múltiplas perspectivas, linguagens, vocabulários, e disputas mesmo. Me parece fundamental a capacidade de lidar com essas tensões de maneira produtiva, por meio de e em direção a uma ideia de justiça. E a outra coisa que trago também é a intimidade com a experimentação, seja pelos tipos de artistas, movimentos e relações com quem costumo trabalhar, seja por ser atraído mesmo pela própria invenção de novas formas de fazer. Acho que, tanto no Solar como além dele, sempre fui bastante encantado pelo fato de os artistas serem essas pessoas que flertam, namoram, e concebem constantemente com o ‘ainda não’. O ISLAA é uma instituição que também tem um interesse grande pela ideia de experimentação: é uma instituição voltada para a arte moderna e contemporânea da América Latina em geral, mas originalmente especializada nos movimentos de vanguarda, nos modernismos e movimentos de arte concreta do Cone Sul, na arte conceitual dos anos 1970, nas diversas formas de práticas artísticas de resistência política etc.

Como a justiça entra aqui como questão para um projeto institucional?
Talvez seja importante dizer que não estou falando da justiça como punição, como relação de causa e efeito, nem em sua relação com a lei, o estado, o monopólio da violência. Pelo contrário, estou tratando aqui da justiça como simultaneamente princípio, meio e destino das ações – ou melhor, convocando [Walter] Benjamin, como uma política de “puro meio”. Ou seja, ao invés da lógica de fazer algo agora que vai trazer um efeito desejado no futuro, é produzir nas próprias formas de fazer o mundo desejado. Essa é a ideia de justiça que eu evoco aqui. Ao invés dos fins que justificam os meios, o “puro meio”. A questão da insatisfação e insubordinação sempre foram importantes pra mim. A experiência de ter me mudado pra cá, de viver e colaborar sobretudo entre imigrantes das mais diversas origens, reforçou muito rapidamente pra mim o lugar que eu ocupo globalmente e o tipo de impacto que minhas ações podem produzir em contextos diversos. Trabalhar aqui e no Brasil ao mesmo tempo é enfrentar a colonialidade de mais uma perspectiva. Espero que esteja claro que a gente está falando de disputa, né? Tratar de instituições significa tratar do campo das disputas ideológicas. O nosso trabalho tem essa importância. Uma instituição como o ISLAA é uma instituição que está operando no campo das disputas simbólicas, e bastante materiais também, dentro de um sistema global que foi estruturado pela colonialidade para distribuir de maneira desigual violências e recursos. Então, quando a gente realiza parcerias com outras instituições, apoia pesquisadores, apoia exposições, apoia publicações, faz aquisições relevantes, pensa sobre essas aquisições, realiza doações importantes etc., é no sentido de transformar, de operar transformações não apenas nas formas como essas histórias são contadas, mas também e sobretudo na relação entre essas histórias e na vida cotidiana das pessoas. Expandindo narrativas e formas de representação e imaginação sobre as artes latino-americanas, mas pensando a relação produtiva disso com diversos territórios e contextos. Nesse sentido, se a gente está falando de disputas, acho que a ideia de justiça como “puro meio” de nossas ações é fundamental.

"TRABALHAR AQUI E NO BRASIL AO MESMO TEMPO É ENFRENTAR A COLONIALIDADE DESDE MAIS UMA PERSPECTIVA. A GENTE ESTÁ FALANDO DE DISPUTA"
Bernardo Mosqueira em frente ao New Museum [Foto: Da Redação/ Paula Alzugaray]
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