icon-plus
O projeto coletivo e auto-organizado Aparelhamento aconteceu em julho de 2016 na Funarte ocupada, logo após o anúncio da extinção do MinC pelo governo Temer; um leilão foi realizado para usar recursos do mercado da arte para financiar ações de luta, relacionadas ao campo ampliado da arte (Foto: Benjamin Seroussi)
Postado em 23/07/2018 - 6:39
Dependências táticas
O espaço independente é o melhor lugar para compreender as tensões das políticas culturais no Brasil
Benjamin Seroussi

Não existem políticas públicas para a cultura no Brasil. Existem programas, leis de incentivo, ações pontuais e equipamentos, quase sempre sucateados, como teatros, museus, arquivos, bibliotecas, coleções e orquestras; mas raras são as políticas que conseguem atravessar a gestão que as desenhou, que dão conta da dimensão pública da cultura e que abraçam a cultura na diversidade das suas manifestações. Nesse vazio institucional, artistas, iniciativas, equipamentos culturais, produtores e o próprio poder público lutam pela sobrevivência, brigam pelos mesmos recursos e correm atrás das mesmas empresas, dos mesmos doadores e dos mesmos editais – a grande exposição, o museu federal, o espaço autônomo, a companhia de teatro e a orquestra do interior vivem em uma guerra desigual e permanente de todos contra todos. Essa paisagem cultural não está totalmente achatada: existem editais voltados para espaços autônomos ou para a produção de obras, programas que focam em minorias, e leis de incentivo que abrem espaços para a manutenção de acervos, mas essas especificidades são exceções nunca consolidadas, conquistas sempre ameaçadas ou apoios raramente assegurados para além de um ano.

No Brasil, nos encontramos na situação curiosa – e invertida – em que o poder público demanda ao setor cultural (que ele mesmo contribui para desorganizar) que se organize sozinho para então sugerir suas próprias políticas – sugestões que serão engavetadas em seguida. Sem condições de planejar suas próprias atividades, e menos ainda de propor um planejamento para o setor como um todo, todos saem precarizados – os artistas em particular, pois as instituições acabam focando mais em suas sobrevivências do que no cuidado ao trabalho artístico, na produção de obras ou na manutenção dos seus acervos, fugindo, portanto, de suas missões originais. Enquanto, no mundo afora, os espaços de arte trabalham de forma cada vez mais contínua com “artistas associados” em programas plurianuais, os equipamentos culturais daqui seguem como barrigas de aluguel, procurando por conteúdos que não têm condições de conceber nem de produzir. Portanto, salvo institutos criados por bancos ou os centros culturais do Sesc, somos todos espaços independentes! Não existem distinções funcionais ou políticas públicas que diferenciam os artistas (agora microempreendedores individuais ou MEI) das instituições de pequeno, médio ou grande porte, públicas ou não. Por isso, o espaço independente é o melhor lugar para entender as tensões que atravessam as nossas políticas culturais.

O que é um espaço independente? É um espaço que não tem dependências fixas (convênio com o poder público, endowment, venda regular de ingressos ou de obras), mas que tem de reinventar constantemente as suas dependências estratégicas para existir. Por isso, é melhor falar em “espaços autônomos” do que em “espaços independentes”, pois a questão é menos deixar de depender e mais saber de quem e como depender. É tecendo essas dependências táticas, criando alianças e estabelecendo associações que, apesar de tudo, e especialmente do poder público, surgem políticas culturais de guerrilha. Fazemos muito mais do que apenas lançar políticas de amigos ou mandar PDFs de apresentação para captar recursos via leis de incentivo. Criamos outras formas de trabalhar e de nos organizar, reduzindo as diferenças salariais, multiplicando as receitas (ou funcionando sem receitas mesmo), extrapolando os limites das artes, abrindo-se para outras formas de engajamento, reinventando as relações com um público que deixa de ser alvo para se tornar participante ativo, mudando nossa relação com o tempo e com o espaço, abolindo as grades de programação e os horários de funcionamento, construindo algo comum (na ausência de algo público), acolhendo o que outros recusam e tentando adaptar as nossas estruturas às práticas artísticas vigentes. Dessa forma, de um modo silencioso e na ausência de políticas públicas claras, os espaços autônomos tentam inventar outras instituições que não parecem fábricas ou templos de consumo, mas onde o pensamento crítico pode circular, instaurando, assim, outros mundos possíveis. Mas essa luta é árdua e muitas vezes apenas conseguimos reinventar… a roda. Por isso, e para garantir que o setor possa ser criativo sem ser necessariamente produtivo, seguir frágil sem ser precário, aberto sem ser diluído, não deixaremos de lutar por políticas culturais públicas que sejam criadas a partir das nossas práticas e das nossas especificidades, pois, antes de ser uma mercadoria ou um setor econômico dinâmico, a cultura é um direito que há de ser assegurado.