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Mar como Extensão do Corpo (2023), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]
Postado em 16/10/2023 - 5:33
Do Lampejo à Alegoria do Desejo
Na obra de Wallace Pato, um dos artistas mais proeminentes de sua geração, uma crítica à má distribuição das riquezas que o país produz

É correto dizer que, na alquimia do tempo, fomos, somos, apesar de difusos instrumentos, técnicas, coleiras, colônia. Muito se ignora o dissimulado estrangulamento de tantas gargantas. Muitos convocados reconhecem-se na reflexão de tais questões. Alguns, possivelmente, são artistas. Poucos, me parece, pintores.

Seria de imediata distinção do ser do artista, como do artista, sua causa? A despeito de quantos digam, um artista não retira o avental jamais. É casco e pele. Contudo, retêm-se a invariáveis determinações. Ocupa-se do pincel à tela para completar-se, larga-os após giros no ponteiro, rotineiramente. Mas nunca se ouviu falar em uma causa pedir licença. Ela o atropela. Paira sobre. Uma causa está para além do homem, como para um artista sua arte. 

Na série intitulada Dignidade como Utopia, exposta na Galeria Mitre, em Belo Horizonte, há aspectos, mais ou menos evidentes, conservados desde a composição das obras, mediante lembranças, de uma pesquisa em Moçambique. O artista percorre o interior e o litoral: Dondo, Mafambisse, Beira… Segue um grupo de médicos socorristas, após o ciclone Idai [março de 2019] rasgar três países inteiros – período a partir do qual tenho acompanhado o desenvolvimento da linguagem plástico-pictórica de Wallace Pato. 

Trabalho sem Nada (2018), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]
A opção de interpretar a natureza do conflito: obra versos realidade, homem versos meio, é a da reconstrução por meio do cotidiano apreendido, como em Trabalho sem Nada (2018). Onde, sem os utensílios exigidos, porém palpáveis, diante da precariedade da situação, é possível somente distinguir gênero, idade, membros, movimentos, provocados por suas necessidades iminentes. Arremedo de gente, que é povo. Dispostos num espaço alusivo se interceptam e se sucedem, juntos. Em quase desordem. Propondo em verdade seu oposto, indivíduos e massa como fibras de um único tecido – pouco importa lado ou frente referencial, apenas momentos diversos. Todos são um no refazimento de um país. Esse espírito aqui é incorporado pelo pintor. Inaugura-se um método. Relação íntima de produção com uma vivência imediatamente correspondida.

A ausência de horizonte, quando figuras extraídas à sua síntese são, de maneira geral, a distinção estética orientadora da série Caminhei sobre a Mãe, Senti o Abraço (2018). Desmembramento completo da paisagem de escombros, resultado da devastação que vira um fundo, por assim dizer, abstrato, planificado, intangível, metafísico (de seu desejo), que dá apoio à representação em destaque – mulheres, crianças, homens. Ainda que seja plana a janela da tela, tem caráter de relevo. Talvez as paredes das telhas de alumínio dos barracos ali estivessem. Frágeis sobre outra construção soterrada, pela ira das águas engolidas. O concreto da rua, a vegetação selvagem, os muros que divisam a propriedade privada estivessem junto a corpos de animais domésticos e seus donos, ali, misturados, formando esse fundo inundado de barro. Um não-lugar. Porém, lugar de todos manifestado. A cor terra será matéria-prima na sequência de suas obras, de alguma forma presente. Metamorfoseada à materialidade,transicionada sob novas demandas. 

Quem Traz o Mar Também Espera (2023), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]

SERTÃO
À medida que as vanguardas, historicamente, foram eliminando elementos representativos da tradição figurativa até sua desintegração, da forma pela forma, em grande parte na arte contemporânea, curiosamente, a pintura de Pato, como outros, os foram adquirindo. Espécie de refluxo à doutrina de uma época. Comum a uma geração de pintores oriundos da rua.

Seja em Quem Traz o Mar Também Espera (2023), na atual série, no conjunto, ou em cada qual, um singular peso, tanto transmitem efusivas intenções, como delas resistem artefatos. Ao passo que, nesta tela, a certa distância proporcional, para o pintor, os contornos humanos, e unicamente deles, são extraídas linhas de definição. Semelhante às obras resultantes da experiência de África, que, agora, faz-se na experiência de outras incursões, as do sertão.

Diante do observador, o rebuscamento ao longe e de igual contraponto, em primeiro plano, um homem. A massa quase despersonalizada, no meio, é um ponto sem foco. Enquanto a trama da caatinga a afoga, galhos, como espinhos, racham o céu − ou, da tela, reunida, toda aquela gente aparenta vigiar afora a dimensão do próprio quadro. Seria reivindicação de condições adequadas? Que parecem não vir. Ou acuados todos? Por um lado, a muralha de espetos estorcidos, de outro, o destino, que factualmente para o povo é repressivo, sangrento. À frente, alguém como um guia, prostrado, corpo inclinado. Uma quase ação. Talvez à espera de uma retórica grandiosa a partir de um lugar ermo. Como tem ditado a tradição. Diferente da tela antes mencionada, eles não têm a envergadura de instrumentos que pudessem erguer. A pintura oferece, apenas, uma realidade perturbadora. Mais além, um horizonte largo que lhes é impedido. Que lhes é negado. O horizonte da paisagem, para Wallace Pato, é o símbolo do encontro de todas as forças antagônicas, espaço mítico onde se desenrolará o princípio das transformações aguardadas, definidora de todas as causas cruciais, que a superfície de sua pintura pode prenunciar. 

O HORIZONTE DA PAISAGEM, PARA WALLACE PATO, É O SÍMBOLO DO ENCONTRO DE TODAS AS FORÇAS ANTAGÔNICAS, ESPAÇO MÍTICO ONDE SE DESENROLARÁ O PRINCÍPIO DAS TRANSFORMAÇÕES AGUARDADAS

O narrado se define no limite da composição fictícia do quadro, aqui, porém, nessa série, o narrador, muitas vezes, rompe tal pacto de ilusão. Deixa-nos evidências. Escapa da tela, sem artifício de colagem, ou tinta ou objeto. Age, sem quebrar as leis visuais. Age em quem completa o argumento, o observador, como ideia, como imagem. Trai sua testemunha como cúmplice. Na obra Mar como Extensão do Corpo (2023), cinco homens atravessam uma vereda. A luz performa a rigidez incisiva dos corpos descritos. Arrastando, num esforço exaustivo, ao primeiro lance ou vista, um “caixão”. Mas, a estrutura de madeira enviesada ao final, estranha à barreira de vegetação atrás, lá não muito verde, nem tão seca, da estiagem do semiárido do sertão, nos é inesperada. Onde está o mar? Mas, um barco aqui? E porque não colocá-lo no centro da pintura? As nuvens se armam. Os homens imprimem nos músculos a pressa (emergência). Um deles ergue o braço, como se liderasse um exército para uma batalha que não podemos ver, ou, como se procurasse, dramaticamente, auxílio de algo que não fora pintado. Se as comparo a O Prazer Quer Tempo (2023), a mesma inquietação. Algo de estupendo nos leva além. Mais além da imprecisão de um barco, da convulsão de um firmamento em cataclismo. Uma poeira inconcebível de camadas de tinta sobem ao céu, unindo-as à terra. Ainda que conservasse uma pincelada crítica em azul à direita da tela. Anuncia-se, assim, tão rápida a rebelião no alto se confirmou, que o homem deitado, agora tocado pelas águas que serpenteiam o relevo, fosse salvo por desejo da providência − desejo do pintor em realizar o sermão de conselheiro, o sertão vai virar mar, no arquétipo entre o divino e o palpável. Entre o visível e o intangível. Como em Três Tempos de Brasil (2023), há também aqui uma questão instalada. Na trama flamejante de gravetos que os ventos singram, como ondas, flutuam velas, levadas para fora da área de ilusão, restrição estabelecida pelo pintor, na parede de um verde opaco, antes que a fronteira física, de expressão, acabasse. Uma janela? Uma pintura dentro da pintura? Já não acaba. Ultrapassa. Como o artista sugere, devemos buscar, pensar para fora do quadro, para além do horizonte. Aqui, o espaço mítico é estendido. O contágio da obra nos constrange às veias da realidade. 

O Prazer quer Tempo (2023), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]
Se nenhum contorno do cotidiano, que incorporou o pintor, em pesquisa, é de fato banal; se o campo de batalha de sua pintura questiona as margens fixas da tela é porque seus trabalhos são impregnados de signos mais amplos. Semiótica em que se percebem metáforas, alegorias, simbologias. Podemos concluir que, como na obra Trabalhando sem Nada (2018), a reconstrução do mundo em que vivemos, sugere Wallace Pato, partisse da utopia que pinta. Conduzida por uma causa que o move, refletir as periferias exploradas do mundo. Basta verificar os levantes anti-imperialistas na região do Sahel ocidental, como em Niger, Burquina Faso, Mali e Guiné, para se compreender as acumulas faíscas de mais uma crise. O pintor dobra a aposta na esperança.

Quando lhe perguntei se o resultado da correlação de forças sociais que permitiria, em última instância, a dignidade, que é título e que promete o conjunto de obras, seria, somente, para o povo qual a região sobre a qual se concentra a série, confirmou-me, sorrindo:

− E o que não é Sertão?

Mar como Extensão do Corpo (2023), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]
Três Tempos de Brasil (2023), de Wallace Pato [Foto: Cortesia do artista]

Andre Di Kabulla é cineasta e escritor suburbano, do Rio de Janeiro. Roteirista e diretor da série com 13 episódios Na Roda do Samba, exibido no Canal Brasil, entre outras direções de filmes, autor do livro Vozes do Labirinto em Relatos Suburbanos, ou Quinze Minutos para Cada Conto em Decomposição (2022).