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Postado em 19/04/2013 - 8:23
Fluxos e repercussões
Atrás dos grandes times, existe sempre uma dimensão do mundo que habitam. Um clube pertence a uma cidade e, dentre eles, nenhum se funde tanto com sua matriz urbana quanto o Barcelona
João Paulo Quintella

Existe uma fração incalculável que representa o quanto das cidades repercutimos no nosso comportamento, o quanto uma cidade representa na construção de subjetividade de cada indivíduo. Um time de futebol, ao entrar em campo, expõe esse coeficiente de maneira concentrada, potencializada. São onze indivíduos dependentes de uma sintonia física e emocional, onze indivíduos cuja transpiração provém de fatores diversos mas que, ao partilharem uma mesma cidade, trazem no suor traços de uma mesma atmosfera urbana.

Nesse terreno de impossíveis quantificações se erguem arquétipos e clichês, uma turva imagem daquilo que se imprime em nós e do que imprimimos como residentes de uma cidade. Em Barcelona, essa imagem ganha contornos precisos no clube que espelha seu próprio nome. Contrário ao culto do indivíduo que se observa no contemporâneo (internetificado), a noção de identidade, de pertencimento a um coletivo, é uma forte questão sócio-política catalã.

Barcelona Nova

Para o arquiteto Ricardo Ruiz Martos, autor de projetos em diferentes escalas, dentre eles o Redesenho com proposta de novas mobilidades para a Avenida Robert Kennedy e o Projeto de Requalificação da Rua Visconde de Inhaúma, este último premiado no 9º prêmio Jovens Arquitetos de 2009, “os modelos de habitação predominantes nas cidades de hoje são também exclusivistas pois exploram o lote, não possuem ligação com a cidade, e encerram produtos extremamente absurdos onde o cidadão tem quase uma mini cidade em seu apartamento, então, pra que sair de casa?”

Em Barcelona, o pensamento arquitetônico e urbanístico que regeu as transformações ocorridas nas últimas décadas reflete esse princípio de pertencimento sem jamais excluir a receptividade ao estrangeiro. “A consolidação social e cívica de uma cidade é muito mais lenta que uma simples construção. Essa defasagem deve ser prevista e compensada por políticas de gestão do novo e do reformado”, observa Daniel Mòdol, Professor do Departamento de Planejamento Urbano e Regional da ETSAB pertencente à Universidade Politécnica da Catalunha desde 1999.
Essa abertura para o novo sem uma descaracterização de identidade foi uma das vitórias do projeto Olímpico de 1992. A estratégia urbana para os Jogos Olímpicos expandiu o uso territorial da cidade, privilegiando não as áreas abastadas ou interessantes para o investimento privado mas a melhoria dos espaços públicos ociosos negligenciados pelas administrações anteriores a retomada democrática da década de 1980.

Liderada por Oriol Bohigas, ex-diretor da Escola Técnica Superior de Arquitetura, a chamada “nova urbanidade” do início da década de 1980 iniciou diversas ações homogêneas entre áreas centrais e periféricas, no intuito de valorizar e manter a identidade catalã através de intervenções na cidade existente.

Em certos espaços, como o porto, a funcionalidade foi alterada privilegiando a ocupação por pedestres sem apagar características estruturais prévias, redesenhando assim os fluxos urbanos. Desse modo, passado e presente, tradição e inovação puderam co-existir. Nessa mesma época, o FC Barcelona vivia a repercussão das mudanças iniciadas a partir do estilo de jogo holandês, introduzidas no clube por Johan Cruijff. Coincidentemente ou não, é também em 1992 que o Barcelona alcança o apogeu no cenário europeu, conquistando sua primeira Liga dos Campeões (na época chamada de Taça dos Campeões). Naquele time, as marcas da abertura eram as mais contundentes, o gol que selou o 1×0 na prorrogação foi marcado por outro holandês, Koeman, mas o caráter catalão, no entanto, estava em campo e vestia Guardiola.
Ao mesmo tempo que a cidade abolia suas distinções territoriais latentes, o Barcelona abolia as distinções entre as fases do jogo e as (tri)partições do campo”, segundo define (primeiro nome) Modeo, no recém-lançado O Barça. Em outras palavras, coincidentemente ou não, simultaneamente, cidade e campo de futebol tiveram seus fluxos reorganizados.

Discípulo de Cruijff e sucessor do também holandês Frank Reijjkard no comando do Barcelona, é no time de Guardiola que a frase “mais que um clube” encontrará seu sentido pleno. O Barcelona de Pep não joga futebol, ele manifesta em campo princípios que transcendem os limites do jogo. Em campo, a bola se transformou em um objeto de obsessão. O time do Barcelona não vive sem ela. Quando destituído dela, luta com todas as forças pela sua recuperação. Quando de posse do seu objeto de desejo os jogadores entram em um modo de circulação incansável e inebriante. Todos parecem ter suas sinapses conectadas ao tecido verde que percorrem. Assim, tomam para si os vetores de tempo e espaço controlando o jogo de forma a anular o adversário. São esses mesmos vetores que incidem na perpetuação e consolidação de um projeto urbanístico. “Os times, assim como as cidades, são falíveis e precisam de constante renovação, novas cabeças pensantes, porém sempre seguindo uma identidade que une toda sua trajetória”, afirma Ricardo Martos. É exatamente esse preceito de permanente renovação que Guardiola assimilou na construção de seu time. De um jogo para outro, a escalação se embaralhava e durante os noventa minutos os jogadores demonstravam que a ocupação dos espaços não pode ser sólida e definitiva, ao contrário, é liquida e permanentemente mutável.

O Barcelona é a imagem de uma cidade que se expôs a fluxos constantes e, no campo ou nas ruas, esse trânsito é produtivo.

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