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Vista da exposição Habuba Farah, que ficou em cartaz até fevereiro de 2024 na Galeria Gomide&Co em São Paulo [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]
Postado em 25/06/2024 - 6:02
Habuba Farah interseccionalizada
Pesquisadoras analisam obra da artista brasileira de origem árabe-libanesa entre as artes, o ensino e a produção feminina

Com intensa produção desde meados da década de 1950, Habuba Farah, artista brasileira de origem árabe-libanesa, segue produzindo hoje, com mais de 90 anos de idade, obstinada em manter a produção e a chama acesa da arte junto ao sopro da vida. 

Uma vontade artística que começou muito cedo, ainda na infância, e que, inicialmente, se deu por um interesse pelas formas geométricas. Conforme o relato de Farah, foi durante o período em que era aluna na Escola Normal Livre, colégio católico e salesiano, na cidade de Lins, interior de São Paulo, hoje chamado Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora. Aos 13 anos, além das aulas de artes, recebeu classes particulares de desenho com duas irmãs salesianas professoras do colégio. Para Habuba Farah, o contato e o reconhecimento que as irmãs demonstraram por sua produção parece ter sido fundamental na formação pessoal – um capítulo da sua história rememorado com muito carinho. Com a finalização dos estudos na Escola Normal Livre, a artista presta o concurso de professora e vai dar aulas de geografia em uma escola na cidade de Osvaldo Cruz, interior de São Paulo. 

Apesar de se manter trabalhando como educadora por um período de dez anos, Farah vinha com frequência à capital paulista, onde pôde manter em desenvolvimento e aprofundamento a sua atividade como artista. Entre os anos de 1952 e 1954, aproxima-se do meio das artes e passa a receber aulas particulares do russo Samson Flexor, artista com o qual compartilhava os interesses pela abstração. É preciso ressaltar a relevância que Flexor teve para as reflexões e o campo das artes paulistanas durante a década de 1950. A atuação desse artista esteve intensamente envolvida com o movimento de “renovação” voltado à abstração nas artes visuais. Além disso, foi o criador do Ateliê Abstração, local de formação reconhecido pela crítica na prática e no debate sobre as artes geométricas. Embora Habuba Farah não tenha frequentado seu ateliê, os dois artistas comungavam dos mesmos pensamentos sobre a arte e puderam construir uma amizade. 

Sem título (2023), de Habuba Farah. Recorte sobre papel [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]
Além das orientações de Flexor, também pôde acessar as aulas de desenho com Mario Zanini e recebeu textos de críticos de destaque, como o pernambucano Mário Schenberg e a artista paulista Ernestina Karman, entre outros. Integrante da pequena elite paulistana, Farah pôde adquirir materiais, viajar, manter os estudos e expor seus trabalhos, como fica evidente em seu currículo. Faz-se necessário mencionar as suas dificuldades, como conciliar a vida profissional com a maternidade, ser migrante de origem interiorana na capital, o que na época impactava as relações. No entanto, não podemos negar que sua trajetória, infelizmente, ainda é uma exceção no Brasil, sobretudo em meados do século passado. 

Simultaneamente aos anos em que Farah realiza seus estudos, firmados na abstração e suas interações com figuras-chave das artes, surgem importantes instituições artísticas, consolidando o sistema das artes modernas em São Paulo. Com a tentativa de criar genealogias com a arte moderna da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, a elite paulistana provê a criação de instituições museológicas privadas, como o Masp – Museu de Arte de São Paulo, fundado em 1947, seguido do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1948. Fundados por industriais paulistas, os espaços tinham a intenção de firmar seus gostos para as artes, em especial, as chamadas artes modernas, como a abstrata e a geométrica. Para isso, realizavam eventos e exposições marcantes para o período. Em 1949, aconteceu a famosa Do Figurativismo ao Abstracionismo, exposição inaugural do MAM-SP, que contou com a participação de Flexor e a coordenação do então diretor do museu, o crítico belga e defensor das artes abstratas Léon Degand. A exposição do grupo Ruptura marcava o início da arte concreta e a forte influência da arte geométrica, em 1952. 

Sem título (1964), de Habuba Farah. Óleo sobre tela [Foto Ding Musa/ cortesia da artista e Gomide&Co.]
Vista da exposição Habuba Farah na Galeria Gomide&Co [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]

RENASCIMENTO NO CIRCUITO
Neste mesmo ano, Habuba Farah realizou a obra Sem Título, um óleo sobre tela de tamanho médio, no qual vemos sobre um fundo preto quatro feixes em matizes próximos ao branco no formato de “v” que se entrecruzam formando polígonos estrelados. Nesta pintura, representante dos primeiros anos de carreira, a artista apresenta traços técnicos que se manterão em toda sua trajetória: um profundo interesse pelo estudo e pela composição cromática, pela abstração e pelas formas geométricas, ou, como a própria artista denomina: um interesse pelo abstracionismo geométrico lírico. Ou seja, não só o abstracionismo, mas a arte moderna como um todo. Em 2021, a tela descrita acima entra para a coleção do Masp, considerado o maior e mais importante acervo museológico da América Latina. A pintura Sem Título (1952), criada 69 anos antes, se tornou elemento de renascimento da artista no sistema das artes. 

Sem título (1952), de Habuba Farah. Óleo sobre tela [Foto: Marcello Paotta/ cortesia da artista e Galeria MaPa]
O contexto intenso de revisionismos e de reajustes de presenças e narrativas dos últimos anos explica, possivelmente, que o museu tenha buscado e incorporado a obra de Farah em seu acervo. Desde 2014, ano em que a atual direção assumiu, o Masp tem sido um importante centro de debates, focando os programas anuais em temáticas que eram pouco abordadas pelas gestões anteriores. Um exemplo disso: em 2019, as pesquisas, exposições e aquisições foram focadas nas histórias das mulheres, demonstrando a pouca presença delas no acervo e resgatando obras e referências de autorias femininas, o que deve ter contribuído para a entrada da obra de Habuba Farah no acervo.

Em uma leitura já clássica de arte no Brasil, os modernismos, visualidades com que Farah dialoga em suas diferentes fases, foram parte dos principais movimentos artísticos presentes tanto no período de constituição do Masp quanto no início da organização de seu acervo. Entretanto, quando pensamos nas presenças que marcaram sua teorização e exibição, ainda nos deparamos com uma seletividade de nomes. Segundo o levantamento apresentado em 2017 (1) pela professora do IEB-USP com foco em arte e gênero, Ana Paula Simioni, a presença feminina em coleções modernistas é baixa. Segundo os dados, na coleção do Masp as artistas são cerca de 20%, enquanto em outras coleções privadas, como a de Freitas Vale (advogado e mecenas), são apenas 6,19%. Já na coleção reunida por Mário de Andrade, o número de mulheres sobe para 17%, mas mesmo assim permanece aquém do socialmente esperado. Simioni aponta que a representatividade não é muito diferente em acervos institucionais públicos, como na Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde as mulheres representam cerca de 20%. Outro dado apresentado é que mesmo em acervos contemporâneos como o do Instituto Inhotim, há um número baixo de artistas mulheres: apenas 22,22%.

Outro estudo que complementa esta análise é A HISTÓRIA DA _RTE, projeto coordenado pelo pesquisador Bruno Moreschi, na Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, que analisou os 11 livros mais estudados nos cursos de arte no Brasil, revelando que em um conjunto de 2.443 artistas, somente 215 são mulheres, sendo a modernista Tarsila do Amaral (1886-1973) a única brasileira citada. Amaral foi uma dessas figuras contraditórias da história, que cabe reconhecer dentro de suas contribuições, mas que também participou de um lugar historicamente hegemônico e de representatividade da elite paulistana nas artes. 

Apesar de ter o seu lugar de destaque, nos provoca grande surpresa que o Brasil tenha, diferente de outros países ocidentais ou ocidentalizados, uma mulher entre os ditos “maiores” nomes do modernismo artístico. Junto a Anita Malfatti (1889-1964), Tarsila do Amaral configurou imageticamente o modernismo brasileiro e foi a criadora da obra de arte mais cara vendida no Brasil, a tela A Caipirinha (1923), que em 2020 atingiu o valor recorde de 57,5 milhões de reais em apenas 15 minutos de lances em um famoso leilão. Um privilégio para poucos e, principalmente, se for uma mulher. 

Sem título (1998), de Habuba Farah. Óleo sobre tela [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]
Vista da exposição Habuba Farah na Galeria Gomide&Co [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]

VIOLÊNCIA ESTRUTURAL
Em um país marcado pela desigualdade de acesso, a análise dos estudos de Simioni e Moreschi escancara a violência estrutural presente na educação e nos espaços artísticos, ainda permeado de machismos e desigualdades. Além de termos apenas uma mulher brasileira citada pelos livros internacionais mais estudados, das 215 mulheres mencionadas, apenas 22 são negras e nenhuma é indígena. Destas últimas, não causa espanto que nenhuma delas seja brasileira. É preciso se indignar com tal cenário e com a realidade das mulheres nas artes, fomentando além de debates, aberturas permanentes. 

Mesmo com tamanha dificuldade, não podemos deixar de notar que, apesar das condições específicas que envolvem a vida de Habuba Farah, a artista teve o privilégio que poucas mulheres têm, tanto na época como nos dias atuais. Como, por exemplo, o acesso aos estudos e a uma carreira independente. Mesmo para as mulheres identificadas como brancas, a conquista do direito de estudar para além do ensino fundamental só veio com a Lei Geral, promulgada em 15 de outubro de 1827. Já o direito de frequentar uma universidade ocorreu apenas em 1879, sob a condição de que as candidatas solteiras apresentassem a licença de seus pais e as casadas tivessem o consentimento por escrito dos maridos. Mulheres não brancas, como negras, indígenas e vindas de imigrações, enfrentavam dificuldades maiores, e por vezes estavam impedidas por lei ou pela condicionante de classe, uma vez que, no caso das universidades, eram frequentadas exclusivamente pelas elites financeiras, em razão dos altos custos para o investimento na formação de nível superior. Um exemplo foi a Lei nº 1, de 1837, que proibia pessoas negras brasileiras ou de origem africana, escravizadas, livres ou libertas, de frequentarem as escolas. São raros os casos de mulheres negras escolarizadas até a primeira metade do século 20. Infelizmente, esta luta ainda é vigente na sociedade atual. 

Mesmo que Habuba Farah não tenha o gênero feminino e a origem familiar como temática de suas obras, estes são pontos, histórica e estruturalmente, diferenciadores na legitimação nas artes. Há aqueles que os vêem com certo exotismo e curiosidade, e outros que identificam neles a manutenção da colonialidade e desigualdade. Segundo o pesquisador e curador Paulo Herkenhoff, se observadas criticamente, as origens territoriais e  étnico-raciais são fatores de exclusão nas artes. Ele revela perceber na trajetória do geometrismo artístico do século 20 – linguagem e período relacionados com a obra de Habuba Farah – certa exclusão a partir de relações de origem de seus autores. 

“No Brasil, duas geometrias parecem ativamente excluídas do círculo universitário eurocêntrico da arte geométrica: a afro-brasileira e a dos artistas nipônicos”, afirma Herkenhoff. Notamos isso em nomes como Abdias Nascimento, Rubem Valentim e Tomie Ohtake, que mesmo com a inegável contribuição para as artes, frequentemente aparecem em paralelo a um momento central e definidor da questão, ou, por vezes, sequer são mencionados. Apesar de Herkenhoff não citar uma geometria identificada como “árabe-libanesa-brasileira”, sua suposição demonstra que, muitas vezes, os critérios utilizados na escrita da história das artes reforçam lógicas sociais atreladas às estruturas de poder territorial e das identidades geopolíticas hegemônicas, o que também pode ter impactado o reconhecimento da obra de Habuba Farah.

Sem título (1975), de Habuba Farah. Guache sobre papel [Foto: Edouard Fraipont/ cortesia Gomide&Co]
O campo da arte brasileira é um lugar de grande disputa, com embates que se dão tanto no que diz respeito à produção artística, suas linguagens e modos de operação das imagens, quanto no que refere ao terreno da escrita: quais histórias devem ainda ser narradas, seus atores e formas de produção de conhecimento. Desse modo, a complexidade de observar a produção de Habuba Farah dentro do contexto histórico e atual das artes no país se dá em uma via de mão dupla, pois, se a artista não recebeu a atenção e valorização merecidas, a sua possibilidade de manter a carreira mesmo diante de tal cenário é de extrema determinação. 

A determinação de Habuba Farah em manter com firmeza sua atuação com coesão – para além dos modismos é uma grande contribuição para as artes no Brasil. Porém, não podemos desatrelar disso o seu lugar de privilégio social. Vale ressaltar também que os dados e pesquisas referenciados aqui são resultado de movimentos recentes de pesquisadoras/es e curadores que atuam diretamente na denúncia das exclusões e para fomentar o aumento de políticas afirmativas de equidade de gênero, classe e territórios, e étnico-raciais nas instituições culturais do país.

NOTA
1) MIGUEL, Silvia. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Representatividade feminina no sistema artístico precisa ser mais bem avaliada. Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/representatividade-feminina-no-sistema-artistico-precisa-ser-melhor-avaliada acesso 20 de junho de 2024

 

Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. Nascida em Xique-xique/Bahia, atualmente residente entre a cidade de São Paulo e Goiânia. É mestre em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, Brasil, 2019). É graduada em História da Arte pela UNIFESP (2014) e possui curso técnico em museologia pela Escola Técnica Estadual de São Paulo (ETEC/SP, 2015). É colaboradora da Revista Contemporary And América Latina e da plataforma virtual Projeto Afro. É docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina e no Centro Universitário Fundação Armando Alvares Penteado. Coordena o setor de curadoria, educação e pesquisa do Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes.

Descendente de alagoanas/os e libaneses, Khadyg Fares é pesquisadora, educadora e curadora com foco nos estudos anticoloniais e dissidentes, nas teorias da imagem e do vídeo. Possui mestrado em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, possui graduação no mesmo curso e instituição. Colabora com a Contemporary And (C&) América Latina. Integrou o Núcleo de Museologia e Acervo do Museu da Diversidade Sexual (2023/2024),  o Núcleo de Pesquisa e Curadoria da Pinacoteca de São Paulo (2018-2020) e o Núcleo de  Pesquisa do Arquivo Histórico Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo (2016/17). Foi coordenadora do Colóquio de Cinema e Arte na América Latina – COCAAL e integrante do Grupo de Estudos MAAR-UNIFESP (Mídias, Afetos, Artes e Resistências).