icon-plus
Leandro Vieira (Foto: Matheus Freitas/ MAM Rio)
Postado em 15/02/2021 - 12:54
Leandro Vieira: Os saberes do corpo no museu
Carnavalesco convidado para a curadoria do MAM de Verão discute o Carnaval como um sistema de conhecimentos, para além da festa

Formado em artes plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o carioca Leandro Vieira atua na cena carnavalesca desde 2015 e tem levado o evento para além das avenidas, em exposições e projetos institucionais. Atualmente, sua Bandeira Brasileira (2019-2021) está no Museu de Arte Moderna do Rio em meio à exposição Hélio Oiticica: A Dança na Minha Experiência, que esteve anteriormente no Museu de Arte de São Paulo. A bandeira em verde, rosa e branco exaltando índios, negros e pobres amplia algumas das complexidades da obra de Oiticica e da instituição como um todo, como o histórico impedimento da presença de passistas da escola de samba da Mangueira durante a exposição Opinião 65 ou a baixa presença de objetos do Carnaval nos acervos dos museus. Além da participação como artista, Vieira integra a programação do museu como curador do projeto MAM de Verão, em que uma série de atividades, como oficinas, palestras e ações promovidas por integrantes de escolas de samba, são oferecidas até março de 2021, colocando a educação como um dos pilares centrais da instituição. Em entrevista à seLecT, Vieira afirma: “Em vez de fazer festa, preferi levar saberes, colocar o mestre-sala e a porta-bandeira como detentores de conhecimentos ancestrais que merecem ser perpetuados.”

Você estudou artes plásticas e atua como carnavalesco, inclusive com interesse em fazer o Carnaval transbordar para além da avenida. Como se dá o trânsito entre essas duas atividades?
A Escola de Belas Artes tem uma ligação histórica com o universo dos desfiles das escolas de samba. A geração de carnavalescos dos anos 1960 – Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Rosa Magalhães, o próprio João Trinta – de algum modo direciona o aspecto estético dos desfiles. Isso abriu as portas da arte mais tradicional para o universo do Carnaval. Porém, por preconceitos estruturais, a produção artística dos desfiles sempre foi tratada como “arte menor”. As instituições formais de arte raramente apreciam os saberes e a produção estética dos desfiles. Eu acabo sendo um artista que milita por esse reconhecimento e tento apresentar propostas que coloquem meu trabalho como carnavalesco no universo da arte contemporânea. 

Poderia dar um exemplo dessas propostas?
Em 2017, realizei uma exposição no Paço Imperial que era uma documentação da minha produção com o Carnaval e, em 2018, fiz uma obra com Ernesto Neto comissionada para a exposição Rio do Samba, no Museu de Arte do Rio. Em 2020, também fui indicado ao Prêmio Pipa como um dos poucos artistas ligados ao Carnaval. Ocupar o MAM com a bandeira agora também é chamar a atenção para isso. É um desejo de direcionar a compreensão de que o Carnaval também é arte. 

Nos anos 1960, Hélio Oiticica tentou levar a escola de samba da Mangueira para dentro do MAM Rio e foi barrado. Como você vê esse convite para participar da curadoria do MAM de Verão?
Em um acervo de 16 mil obras, não há nenhuma vinda do Carnaval. É uma lacuna enorme, porque são mais de 90 anos de história e o museu deveria preservar a memória da produção estética da cidade. Quando o museu me convida para ser artista e curador, eles me dão autonomia para pensar como isso vai se dar. Em vez de fazer festa – que é algo que tento desconstruir –,preferi levar saberes, colocar o mestre-sala e a porta-bandeira como detentores de conhecimentos ancestrais que merecem ser perpetuados. De um lado, temos a produção estética – a bandeira – e, do outro, esses saberes que estão armazenados no corpo. 

O MAM de Verão tem um aspecto centralmente educativo, com oficinas, seminários e performances no centro do projeto. O que o Carnaval tem para ensinar ao museu?
O pensamento eurocêntrico construiu a ideia do conhecimento como algo acadêmico e literário, mas há saberes que são ancestrais, do corpo, sobretudo as tradições africanas. O samba é um saber de tradição preta que é guardado no corpo. Não há como documentar de maneira literária as gramáticas dos tambores. É quase uma extensão do corpo. Os artistas são mais atentos a essas questões do que as instituições, mas quando a curadoria do MAM recebe uma mostra do Hélio Oiticica, que esteve em cartaz antes no Masp, é importante entender que, se a mostra trata da dança, falta a presença do corpo. Acho que essa abertura é um mérito da direção da Keyna Eleison e do Pablo Lafuente e isso cria um canal para uma população que tradicionalmente é distante desse universo e que também pode aprender com ele.  

Há um debate sobre como as posições de poder dentro do Carnaval têm sido crescentemente ocupadas por pessoas brancas. Como você vê esse processo, considerando que o Carnaval é historicamente preto?
Hoje, de um modo geral, falta sambista nas escolas de samba. Há um branqueamento de gestão, que não compreende essa tradição. Na minha ocupação no MAM, fiz questão de focar em pessoas pretas, em combate a esse processo.  Na totalidade do perfil de convidados para compor os saberes das oficinas e mesas de debates, os corpos pretos são protagonistas de quase tudo. São nomes como Helena Teodoro, Wesley, mestre de bateria da Mangueira, Millena Wainer, Evelyn Bastos e Flávia Oliveira. 

Você comentou que o Carnaval não é só uma festa. Poderia explicar?
Por questões comerciais e turísticas, o Carnaval foi reduzido à festa. A televisão só mostra o desfile. No Rio de Janeiro, os desfiles são tratados pela Secretaria de Turismo, não pela Secretaria de Cultura, o que esvazia a pauta de que o desfile é um patrimônio. A produção intelectual e estética, os saberes de uma escola de samba, não podem ser reduzidos a comércio e turismo. Quando nós não estamos nos cadernos de cultura, mas nas páginas de turismo, nós estamos no lugar errado. Reforçar a ideia de festa é reforçar a ideia de negócio e não reconhecer a dimensão cultural, artística e intelectual do Carnaval, que é a pauta que quero seguir propondo com o meu trabalho. 

Como é fazer Carnaval em um momento pandêmico?
O Carnaval é mais do que a festa. Mesmo não ocorrendo aquilo que a televisão transmite, a gente pode continuar conversando e gerando conteúdo. É muito complexo e envolve uma série de processos e intelectualidades que não podem estar condicionados exclusivamente à realização do desfile. Fazer Carnaval na pandemia é seguir como estamos fazendo aqui: debatendo a pertinência e os saberes do Carnaval, levando essa visualidade para outros lugares possíveis e seguindo com a pauta em outros contextos e com o debate para além da festividade. 

Tags  
carnaval   leandro vieira   mam rio