Abstract: Este é um relatório de falsificação de ficção generativa, realizado a partir de simulações de comportamento de algoritmos de inteligência artificial, informações de satélites de espionagem, sistemas de reconhecimento facial, escaneamento biológico e biométrico, e GPS, dos quais a autora tem pouco ou nenhum conhecimento empírico até o momento. Obs 1: Isto é a reescritura ficcional de uma crítica de arte. Obs 2: Isto é também um texto fragmentado, onirizado, atravessado pela impossibilidade de construir com a linguagem algo além da dispersão.

Parte 1. Simulação de curriculum vitae generativo

Em 16 de março de 2024, às 15h55, aos 50ºC da terceira onda de calor extremo do ano, na Zona da Mata Sul, Pernambuco, Brasil, foi rastreado, por sistemas maquínicos de classificação, um indivíduo dirigindo em alta velocidade na rodovia PE-064, cujos dados não puderam ser identificados por satélites de reconhecimento óptico de alta definição. Acionado em casos de monitoramento máximo, o Facial Recognition Project Report emitiu dados para a imediata elaboração de um curriculum vitae generativo.

Operado com tecnologia original da CIA e atualizado por centros de pesquisa universitária em colaboração com big techs, o sistema de reconhecimento facial foi impreciso e insatisfatório quanto a estimativas de idade, gênero e qualidades emocionais. Perfilou um indivíduo com idade entre 24 e 53 anos, de gênero masculino e/ou feminino e/ou outros, nem bonito nem feio, nem alto nem baixo. Apesar de aparente tranquilidade facial e olhar impenetrável, foi registrada flagrante amplitude de sentimentos contraditórios, oscilando entre as seis emoções universais – alegria, tristeza, medo, surpresa, aversão e raiva –, resultando na impossibilidade de extração de uma performatividade calculada segundo as tipologias de classificação de comportamento normal, definidas por discípulos do criminologista e pai do retrato falado, Alphonse Bertillon (1853-1914). Consequentemente, inviabilizando a avaliação de qualquer propensão a doenças mentais ou ao cometimento de crimes.

Às 16h23, informações sensíveis mais precisas chegaram por meio de imagens e sinais de comunicação interceptados via satélite de espionagem, que detectou 32 caixas lacradas no porta-malas da caminhonete de placa XXX601005 e, sobre a maior delas, talhado em baixo-relevo, provavelmente com uma faca de lâmina cega, o texto: “A lo largo de los siglos, América Latina no sólo ha sufrido el despojo del oro y de la plata, del salitre y del caucho, del cobre y del petróleo: también ha sufrido la usurpación de la memoria” – identificado por meio de tecnologia básica de busca como um trecho do livro Memoria del Fuego 1: Los Nacimientos, do autor uruguaio Eduardo Galeano.

As primeiras evidências cruzadas com bancos de dados digitais levaram à conclusão de o/a indivíduo tratar-se de engenheiro/a ou arquiteto/a, latino-americano/a, mais precisamente de nacionalidade chilena, radicado/a em Nova York, Estados Unidos, desde o golpe militar de Augusto Pinochet, em 1973, e recentemente contratado/a para a reativação de uma antiga usina de produção de álcool e açúcar e sua conversão em parque de instalações de arte contemporânea a céu aberto.

Parte 2. Performatividade calculada para ambientes desertificados

Doravante denominado Ela/Ele, esse indivíduo dirige a XXX601005 em estrada que atravessa a região da Zona da Mata Sul pernambucana, originalmente Mata Atlântica. A constatação de esparsas palmeiras espalhadas em campos de pastagem e cana-de-açúcar indica que a região, agora de clima semiárido, não pode mais ser categorizada como parte do bioma Mata Atlântica, mas deve ser entendida como nova Caatinga, passando assim a integrar os 85% do semiárido brasileiro em processo de desertificação moderado, ou os 9% em efetiva desertificação. Os dados para a definição sobre em qual dos dois grupos a Zona da Mata Sul se inclui ainda são inconsistentes.

Aproximadamente, 1,2 quilômetro adiante da XXX601005, homens a cavalo são avistados por tecnologia street view. Atrás deles, mulheres e outros homens seguem a pé pelo acostamento. Com a ferramenta de zoom in, revelam-se vestimentas e chapéus de couro puído, com acabamento em bordados e acessórios como lenços e cintos decorativos, que muitos anos atrás devem ter sido ricos e elaborados. A XXX601005 reduz a velocidade. O vidro automático é aberto. Ela/Ele oferece carona ao grupo de pedestres, que entra no carro. Sistemas de sonar passivo são acionados para escuta das conversas dentro do veículo. Os caroneiros, possivelmente abatidos pelo calor e pela fome, estão dizendo que vão buscar trabalho nos canaviais de Água Preta. Sistema de levantamento de dados informa que a antiga Usina Santa Terezinha, na cidade de Água Preta, a 150 quilômetros do Recife, foi nos anos 1950 a maior produtora de álcool e açúcar em atividade no país. Fechado no começo dos anos 1980, o complexo industrial ficou em ruínas e a vila de 5 mil trabalhadores da cana foi largada à própria sorte.

Novos dados e evidências apurados alteram o curriculum vitae generativo anteriormente digitado pelo sistema de vigilância. A visualização de outros itens transportados na XXX601005, com ferramentas street view de alta sensibilidade, revela dois maços de papéis com conteúdo categorizado como altamente significativo. Os títulos The Sugar and the Hunger − An Inquiry into the Sugar Regions of Northeastern Brazil e City-Level Impact of Extreme Temperatures and Mortality in Latin America levam à hipótese de Ela/Ele ser jornalista, artista ou cineasta, mais precisamente conferencista em um simpósio internacional sobre arte e capital.

A detecção de iminente organização de formas de empoderamento popular para transformação de estruturas sociais cristalizadas acende a luz vermelha do sistema.

Parte 3: Erro irreversível no sistema

Anoitece. Com visibilidade prejudicada, são acionados sistemas remotos com sensores especializados para capturar dados em outras faixas espectrais, como infravermelho, micro-ondas e radar, para análises mais detalhadas de características da superfície terrestre, como temperatura, umidade e composição do solo, entre outros.

A XXX601005 deixa a PE-064 antes da divisa do estado com Alagoas. Executa 1,1 quilômetro de trecho por terra e estaciona em frente à ruína da Usina Santa Terezinha. As 32 caixas começam a ser retiradas do porta-malas por Ela/Ele, com auxílio dos retirantes caroneiros e dos cavaleiros que chegam a galope cego. Em modo alerta extremo, o sistema de vigilância especula tratar-se de caixas-pretas de sistemas de IA desenvolvidos desde 1963 e contrabandeadas pelo Exército de Libertação Nacional (ELN) e dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que, segundo o ChatGPT, estão atualmente entre as guerrilhas mais sanguinárias da América Latina.

Durante horas de escuridão máxima de uma noite sem lua, os 32 objetos não identificados são retirados das caixas e, por meio de um elevador improvisado, lentamente conduzidos para o alto da ruína. São 6h15, raiar do dia. Um verdor terrível acende na fachada, em néon piscante. Identificado inicialmente como o luminoso de um motel, desenha frase fantasmagórica e bilíngue, que não pôde ser devidamente decifrada pelo sistema:

Il Velho Mondo Está Nascer e em Tardain Nuovo Monstros.
Morrendo Nesse Sta Comparire. i Monstri. Questo Tarda
Chiaroscuro Mundo Claro-Escuro Nascono os Mondo Nascem
Morendo in a O Novo Vechio Quello e o

O discípulo de Bertillon define as seis emoções universais como um processo, um tipo particular de avaliação automática influenciada pelo nosso passado evolutivo e pessoal, no qual sentimos que algo importante para o nosso bem-estar está ocorrendo, provocando assim um conjunto de mudanças psicológicas e comportamentos emocionais para lidar com a realidade.

O sistema de reconhecimento detecta o sentimento de aversão predominar nas faces de Ela/Ele e aliades. A propensão ao crime torna-se uma possibilidade factível.