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Judeus e muçulmanos dançam juntos ao redor de um cacto com gigantescas flores vermelhas em uma floresta de oliveiras e tamareiras com cachos de romã, em Jerusalém (2023). Maria Graham (1785-1842) e Giselle Beiguelman + DALLE e Runway; à esq., Israelenses e palestinos festejam uma flor híbrida de Iris Haynei e Anemone Coronaria que cresce no deserto (2023), Henry Maundrell (1665–1701) e Giselle Beiguelman + DALLE e Runway [Fotos: Cortesia da artista]
Postado em 12/01/2024 - 2:33
/Imagine Paz
Em texto e imagens correalizados com ChatGPT, Giselle Beiguelman reflete sobre violência e paz

A violência das imagens que circulam na internet põe a guerra na palma da mão de todos. A avalanche de vídeos produzidos, muitas vezes durante os morticínios, é transmitida nas redes sociais, canais e grupos de Telegram e WhatsApp. Fake news, desinformação e uma quantidade avassaladora de statements antissemitas e islamofóbicos jorram desavergonhadamente por todas as frestas de diferentes telas.

Não consigo parar de pensar em um velho filme de Roberto Rossellini, Alemanha, Ano Zero (1948), filmado nos escombros de Berlim em 1945. É um filme sobre perdas (afetivas, morais e materiais), infâncias roubadas (pela morte, mas também, ou sobretudo, pela experiência da guerra em si), sofrimento e feridas que diplomacia nenhuma é capaz de cicatrizar.

O ambiente online tornou-se demasiado tóxico e, no auge da solidão noturna, apelo ao ChatGPT para imaginar a paz. Entre algumas bobagens que o programa diz sobre o papel que a arte pode desempenhar em um momento como este, me surpreendo com sua leitura desse filme:

“Embora se concentre na Alemanha do pós-Guerra, o modo como Alemanha, Ano Zero explora as consequências devastadoras de um conflito militar pode ser uma lente para compreender a complexidade do confronto Israel-Palestina. O filme fala de devastação e trauma, retratando o sofrimento após a Segunda Guerra Mundial, levantando questões sobre a moralidade e a sobrevivência em tempos de desespero. Isso também pode ser aplicado ao conflito Israel-Palestina, onde frequentemente se cita a necessidade de sobreviver e proteger os interesses próprios, em detrimento da moralidade e dos direitos humanos. Alemanha, Ano Zero mostra o efeito das guerras sobre as crianças e como são afetadas pelo ambiente pós-Guerra, em suas perspectivas de paz e reconciliação. O nacionalismo, e como ele se desdobra em extremismo e intolerância, é outro tópico importante do filme que enfatiza a complexidade da situação e a necessidade de compreensão mútua”.

Para uma máquina, é muito fácil falar de compreensão mútua e ponderar que alguém envolvido em uma dinâmica de ódio e violência, do porte da que atravessa Israel e Gaza, poderá chegar a algum grau de cumplicidade. Prefiro seguir com o ceticismo de Amós Oz, em Como Curar um Fanático. A paz não será um dia de festa. Será um dia de renúncia, um longo luto em respeito às gerações futuras que, eventualmente, poderão aprender a conviver.

Mas Amós Oz fala também que esse dia mereceria ser marcado por um Monumento à Ignorância, construído por ambas as partes. Algo que o hediondo ataque terrorista do Hamas a Israel, em 7 de outubro, e a brutalidade da invasão israelense a Gaza reforçam.

Esta é uma ideia que me persegue. Não a do monumento em si, mas se seria possível sonhar com um empreendimento coletivo entre os dois povos num futuro utópico, em que existissem dois Estados com fronteiras reconhecidas pela ONU e liberdade, tranquilidade e sanidade mental para todos os seus
respectivos cidadãos.

"O AMBIENTE ONLINE TORNOU-SE DEMASIADO TÓXICO E, NO AUGE DA SOLIDÃO NOTURNA, APELO PARA O CHATGPT PARA IMAGINAR A PAZ"
Flor híbrida de Anemone Coronaria (a flor-símbolo de Israel, kalanit) e Iris Haynei (faqqu’a iris, flor-símbolo da Palestina) criada com Inteligência Artificial (2023), Maria Sibylla Merian (1647-1717) e Giselle Beiguelman + DALLE e Runway [Foto: Cortesia da artista]

ESPÍRITO DO TEMPO
Em 2017, participei de um evento no Van Leer Institute, em Jerusalém, (Urban Histories in Conflict, promovido pela European Architectural History Network e organizado pela Universidade Technion), no qual propus, em vez de um monumento ou um memorial às vítimas, substituir as placas de concreto do muro por placas de madeira, compondo uma sequência de gangorras. Como se sabe, uma gangorra só funciona quando duas pessoas cooperam e sugerem compartilhamento e confiança mútua. Esse princípio da
gangorra é tão potente que não surpreende ser uma ideia recorrente entre artistas, quando se pensa em muros que separam brutalmente os povos. Inevitável lembrar do filme O Muro (2017), de Lula Buarque de Holanda, que também pensou essas questões.

Não tenho pretensão à originalidade e recordo a intervenção genial feita pelo arquiteto Ronald Rael, Teeter-Totter Wall (2019), no muro que Donald Trump mandou construir entre o México e os Estados Unidos. Lá as gangorras conectaram crianças e adultos de Sunland Park, no lado estadunidense, a Anapra, no lado mexicano. Decidi fazer um modelo 3D do meu projeto, usando recursos de Inteligência Artificial que desenvolvem imagens a partir de comandos de texto. E eis que a Inteligência Artificial mostrou que é mesmo o zeitgeist do nosso tempo, como pontuou o crítico Boris Groys.

Groys argumenta que os grandes modelos de IA, baseados em linguagem textual (LLM, Large Language Models),como os usados pelo ChatGPT, para escrever, e pelo Midjourney, Stable Difusion e Runway (para criar imagens a partir de textos), são desenvolvidos com milhões e milhões de livros, artigos científicos, enciclopédias, receitas etc. Por isso, suas respostas, gostemos ou não, refletem o “espírito do nosso tempo”.

"A PAZ NÃO SERÁ UM DIA DE FESTA. SERÁ UM DIA DE RENÚNCIA, UM LONGO LUTO EM RESPEITO ÀS GERAÇÕES FUTURAS QUE, EVENTUALMENTE, PODERÃO APRENDER A CONVIVER"

Provei a hipótese de Groys ao tentar fazer uma imagem das minhas gangorras e ser advertida que o meu conteúdo infringia as regras da comunidade e que a repetição de minha ação poderia me levar à suspensão da minha conta (que é paga). O prompt (a instrução que passei) foi sistematizado no ChatGPT e dizia o seguinte: “Crie uma intervenção artística que expresse a busca pela paz e conciliação entre Israel e Palestina. A intervenção transformará o muro divisório em Jerusalém em uma série de gangorras, posicionadas metade em cada lado da fronteira entre Israel e Palestina. Cada placa de concreto do muro se tornará uma prancha de gangorra, projetada para permitir a interação entre crianças, adultos e pessoas, no lugar onde o muro antes se encontrava”.

Flor híbrida de Anemone Coronaria e Iris Haynei criada com IA a partir de traduções de texto em imagem e de visão computacional image-to-image (2023); Augusta Innes Withers (1792-1877) e Giselle Beiguelman + DALLE e Runway [Foto: Cortesia da artista]

JARDIM UTÓPICO
Desde que realizei o projeto Botannica Tirannica (2022), que investiga a naturalização do imaginário colonialista, por meio de plantas que têm nomes antissemitas, racistas e misóginos, convivo com ameaças de expulsão das plataformas por usar termos sensíveis. Aprendi a driblar o sistema, utilizando nomes científicos, em latim, para construir os prompts (apesar de serem por vezes muito mais agressivos que os nomes vernaculares). Mas, no caso das gangorras que eu pretendia construir, essa estratégia não funcionou. Apesar de ter refeito as instruções, os resultados, quando não me ameaçavam de banimento, traziam sempre o muro ocupando o centro do quadro. Como se o zeitgeist do nosso tempo fosse a inevitabilidade da guerra.

Depois de outras tentativas frustradas, tentei definir outros parâmetros para criar um jardim plantado por israelenses e palestinos no lugar dos muros que os separam, insistindo que, ao menos no plano utópico de um futuro qualquer, desejar a paz tinha alguma validade. Segundo o ChatGPT (nova surpresa), o jardim deveria ter forma elíptica, uma figura geométrica que descreve um novo centro a cada volta da linha. Por isso o filósofo Jacques Derrida dizia que essa era a figuração da leitura. Cada retorno ao texto implica outro eixo, outra visão de mundo. E não era isso mesmo o que eu queria, a despeito dessa odiolândia planetária em que afundamos?

O jardim não ficou como imaginei, mas me permitiu aventar uma flor híbrida que não existe para ocupar este ensaio. Ela é fruto de um cruzamento entre a Anemone Coronaria (anêmona, ou kalanit, em hebraico), flor-símbolo de Israel, e Iris Haynei (faqq’a iris, em árabe), flor-símbolo da Palestina. Das suas fusões, e a despeito dos dados enviesados das Inteligências Artificiais, elas parecem soprar um comando para criar imagens com IAs: /imagine. A PAZ.

As flores Anemone Coronaria (vermelha) e Iris Haynei [Fotos: Krzysztof Ziarnek (anemone); Alastair Rae (iris) / Wikimedia Commons]