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Onde Está a Arte Indígena no Paraná (2020), do artista-escritor Gustavo Caboco, que usa texto e imagem para resgatar a origem Wapichana (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 18/06/2021 - 10:00
Tatak Boacé – palavra que pulsa
A necessária escrita da história pelos povos originários

As vivências são a própria essência da palavra, pois a palavra, se com alma, movimenta afeto, lucidez e utopias. Avivo de gratidão é a gestação e o parir de pensamentos despertos em atos. A presença de um povo, de suas vozes, do cheiro de floresta e a insistência em se manter vivo em palavras são semeaduras afetivas e enraizadas pelo empenho das autoras e autores originários no tempo presente.

Pensando sobre o lugar dos povos originários na história e nas literaturas, é possível constatar que o desenvolvimento de um registro sobre os processos históricos que marcam sua presença e atuação vem sendo negado e silenciado na descrição tradicional da história e demais ciências por um sistema colonizatório e por uma escrita na perspectiva do outro, uma escrita de “fora para dentro”. Diante disso, faz-se necessário compreender os originários e seus remanescentes/descendentes em seu tempo e lugar, valorando suas experiências e narrativas, repensando e desconstruindo a memória de sua história registrada pela ótica do homem colonizador.

Nos registros oficiais que podemos analisar, os processos de construção de memórias e histórias silenciam os originários desta terra. A partir de meados do século 19, a Assembleia Nacional Constituinte discutiu amplamente debates para o fortalecimento do conceito de nação. O melhor modelo, eleito pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), para escrever a História do Brasil, ainda em 1938, foi a dissertação de Carl Friedrich Philipp von Martius. O alemão, tendo formação em medicina, propôs uma história que tinha por norteadora a mistura das três raças para explicar a formação da nacionalidade, ressaltando, nessa análise, a valorização do elemento branco, além de sugerir um progressivo branqueamento “como caminho seguro para a civilização”. Nesse processo, com a intenção de inserir mecanismos de controle, a educação escolar e a escrita de uma história brasileira tornaram-se a possibilidade de consolidar a conformação social e cultural na qual originários/indígenas, afro-brasileiros, mulheres e a população, de forma geral, eram inferiores.

No decorrer dos séculos, tanto na literatura quanto em registros históricos, as narrativas generalizam a participação do originário como o “índio”, colaborando para afirmar a sua não contemporaneidade, como se indígenas fossem um todo homogêneo, iguais entre si e fazendo parte apenas do passado.

Povos Originários é um termo que se refere a 305 etnias no Brasil atual (que já foram mais de mil na época da invasão europeia). A palavra índio, empregada no século 15 aos povos originários, tem origem no nome do Rio Indu, do Sânscrito Sindhu, como era conhecido um dos sete rios sagrados da Índia, reduzindo a diversidade de povos em apenas uma palavra que não tem referência em nenhuma das línguas dos povos originários.

As abordagens, feitas a partir desses materiais, levaram a concluir que os povos originários não fazem parte da sociedade brasileira e que as relações só se deram na época da chegada dos colonizadores ao Brasil. Consolidou-se uma hierarquia científica da palavra escrita, atribuindo, direta ou indiretamente, invisibilidade, inferioridade, passividade e exclusão aos povos originários.
Em suma, há uma tendência na historiografia de seguir uma postura excludente perceptível: o “ofício do historiador” (dos “cientistas”, “filósofos”, “sociólogos”) é um ofício de homens brancos, que escreveram a história no masculino, patriarcal e colonizador. Os povos originários, por muito tempo, foram “objeto” de estudo. Tornou-se lugar-comum escrever sobre os indígenas, mas nunca com. Não foi possível que fôssemos os próprios autores e autoras da historiografia. A escrita dos povos originários, nesse processo de colonização, que se estende aos dias atuais, é um lugar de vozes silenciadas.

Decidimos escrever
O histórico do trágico contato com os colonizadores revela, além do genocídio, também o etnocídio que, juntamente com outros fatores, ainda limita a compreensão da “sociedade” (refiro-me à não indígena) ao real protagonismo e atuação do originário. A vasta pluralidade étnica do Brasil ainda é desconhecida pela parcela majoritária da sociedade. Nessa perspectiva, a escrita de oralidades e memórias de nosso povo é instrumento de compreensão, pois privilegia a participação de pessoas que foram testemunhas de um processo histórico no Brasil. A pluralidade, proposta pela transição da oralidade à escrita, desdobra-se em rico diálogo.

A publicação de autoras e autores indígenas intenta atravessar “os muros da história oficial” e, com isso, possibilitar que as pessoas entendam que os originários são parte da sociedade, que têm direitos e que podem falar e escrever sobre os temas que desejarem, inclusive, e principalmente, sobre a história dos povos dos quais fazem parte. A partir de nossas inquietações, escrevemos. Para honrar nossas ancestrais, escrevemos. Escrevemos porque há uma floresta em nós, afetos e uma luta. Escrevemos para desconstruir registros colonizadores.

Há uma vasta bibliografia indigenista que não foi escrita pelo originário/indígena. Tais escritos se apropriam de nossos conhecimentos e saberes, muitas vezes traduzidos em vários idiomas, menos no idioma daquele que inspirou o registro. E o autor é sempre o outro. Um povo que é originário não será mais silenciado em seu próprio território e em seu conhecimento. Então, também por isso, decidimos escrever.

Esse processo de registro histórico para o currículo escolar brasileiro consolidou o preconceito evidenciado nas formas pejorativas de se referirem a nós, como “coisa de índio”, “modelo tupiniquim”, dentre outros. Lembramos, ainda, que não somos “índios”, não escolhemos essa forma de chamamento. Inclusive, é bom sinalizar que, se quiséssemos o mês de abril como espaço de memória das lutas indígenas, que fosse para rememorar Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, brutalmente assassinado em Brasília por cinco jovens de alta classe – que, atualmente, ocupam altos cargos políticos –, no dia 20 de abril de 1997.

Com a implantação da Lei 11.645/08, o ensino de Culturas e Literaturas Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas tornou-se obrigatório nas redes públicas e privadas de todo o território nacional. Ainda é precária e lacunar a sistematização de saberes indígenas

Diante dessa realidade, a voz originária ecoa forte e lúcida. Nossa premissa é oportunizar que essa voz plural se faça presente na escrita histórica e literária. No site Wikilivro, idealizado por Aline Franca, da Livraria Maracá, podemos encontrar uma bibliografia colaborativa que reúne as publicações de escritores indígenas do Brasil. O objetivo dessa iniciativa é servir como obra de referência e fonte de consulta para pesquisadores e leitores, indígenas e não indígenas, interessados nesse tipo de literatura. Essa bibliografia foi iniciada em janeiro de 2019, listando publicações indígenas do Brasil.

Com a implantação da Lei 11.645/08, o ensino de Culturas e Literaturas Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas tornou-se obrigatório nas redes públicas e privadas de todo o território nacional. Ainda é precária e lacunar a sistematização de saberes indígenas. Objetivamos registrar a presença e o protagonismo de originários, analisando suas experiências e problematizando como suas “falas” poderão alterar a hierarquia moldada pela ótica do homem colonizador na construção da história brasileira. E, assim, objetivamos promover a Lei 11.645/08 como espaço no currículo.

O currículo escolar brasileiro, em muitos casos, não consegue estabelecer identidade com os educandos, porque enfatiza uma história eurocêntrica e, assim como ocorre com a literatura, não nos representa historicamente. Nossa proposta se faz em escrever uma história plural, sem pretensões de hierarquias academicistas, escrever a história em que a oralidade da anciã e do ancião originários seja honrada. Uma história com a qual as crianças, os jovens e os adultos se envolvam e da qual se sintam parte, reconhecendo e se identificando com a história que está na terra. Schuteh Poteh – Boa Luz! Tatak Boacé – Palavra do coração.

POEMA VERMELHO
(Aline Rochedo Pachamama)

Do Povo Puri da Mantiqueira
…E se esses tempos nos sufocam,
também as árvores perderam as folhas
e mudaram a casca do tronco.
Para voltarem mais resistentes
Naquela outra estação.

Tsatêh, não temos opção de fragilidade,
Somos o grão que germina força.
E se marcam nossa pele com cicatrizes as invasões,
o genocídio e as constantes colonizações,
Nossa alma decide transformar dor em energia.
Que seja a fúria, mas nunca a apatia.
Em meio aos furacões diários,
Sabemos para onde olhar quando
deles saímos.

Firmes.
Não tombamos para um ou outro lado.
Escolhemos a direção e seguimos.
E se somos Tempestade,
também orquestramos a calmaria.
dos raios, trovões e ventanias
Lutando, sonhando coletivo, Vivendo!
Sendo os animais que nos acolhem em força
Cantando o som que a Mãe Terra grita.

Não temos os medos que o capitalismo engendra:
Morrendo somos encantados.
Vivos somos Presente.
Nos move a força dos ancestrais,
E a floresta que em nós habita sempre.

…E se esses tempos nos sufocam,
Também as árvores perdem as folhas
e mudam a casca do tronco.
E voltarão mais resistentes,
Na próxima estação.