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Castanheiras de Eldorado dos Carajás (1999), monumento erguido no local do massacre de trabalhadores rurais e sem-terra pela polícia, erguido por Dan Baron e a comunidade local, com 19 troncos da árvore da castanha (Foto: Gil Vieira)
Postado em 30/09/2021 - 9:59
Terra de arte, meditação e conflitos: Marabá
No sudeste do Pará, o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante, mesmo que invadida por adversidades e agravada com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira

Na busca de minerais para que pudesse energizar seu corpo e prosseguir em sua viagem espiritual, Marina Abramović pousou em Marabá. Em meio a blocos de quartzo, reclinou a cabeça sobre o cristal e deitou-se sobre o banco de ferro para sentir o poder da alquimia vinda da terra, dos cristais. Ali, naquele campo magnético, realizou uma das versões de Waiting for an Idea. Abramović esteve em Marabá durante a Eco-92, integrando o projeto Arte Amazonas, apresentado pelo Instituto Goethe de Brasília. O Projeto teve a participação de 27 artistas do Brasil e de outros países e se propunha refletir, no próprio território amazônico, as questões ambientais pelo viés da arte contemporânea.

No catálogo havia o texto Réquiem Tropical, do antropólogo Darcy Ribeiro, que, a partir da sua vivência na floresta, concluía que as imagens da Amazônia tanto correspondiam ao “Inferno-Verde como ao Paraíso-Terrenal”. E, quanto à ideia de povoar a Amazônia, possuía visão crítica, afirmando que “o que se está fazendo não é instalar ali as populações excedentes de outras áreas. É, isto sim, entregar a Amazônia à especulação fundiária”. Situada entre dois rios, o Tocantins e o Itacaiúnas, Marabá é uma cidade marcada por forte migração e atravessada por megaprojetos, gerida por ciclos econômicos que envolvem a extração mineral, o extrativismo vegetal e o negócio agropecuário. Seu programa de desenvolvimento pode tanto produzir riqueza como violência e conflitos de terra. Numa luta desigual, quatro anos após o Arte Amazonas, em 1996, ocorre o Massacre de Eldorado do Carajás, quando, armados de pau e pedra, os trabalhadores rurais se defendem da polícia, que, no solo, deixa a mancha de sangue dos 19 sem-terra assassinados. A tragédia aconteceu na Curva do S, local onde participantes do Movimento Sem Terra (MST) se encontravam acampados. O episódio nunca seria esquecido. Naquele mesmo ano, o MST procura Oscar Niemeyer para a construção de um monumento às vítimas de Eldorado do Carajás; e, de acordo com o pesquisador Gil Vieira Costa, “em julho daquele ano, o projeto já estava elaborado”. O Monumento Eldorado Memória, no entanto, logo sofreu ameaças e a sua destruição, esclarece Vieira, acontece em um momento de tensão entre o MST e a União Democrática Ruralista (UDR).

Esboço do Monumento Eldorado Memória (1996), realizado por
Oscar Niemeyer a pedido do Movimento Sem Teto (MST) (Foto: Reprodução)

Arte e memória
Em 1999, outra obra seria erguida no mesmo local em que ocorreu o massacre. Desta vez de autoria do arte-educador Dan Baron Cohen, em parceria com integrantes do MST. O gaulês Dan Baron, residente em Marabá, é o idealizador do projeto Rios de Encontro, que desenvolve, com a comunidade, ações colaborativas de caráter socioeducativo. Castanheiras de Eldorado do Carajás foi erguida com 19 troncos da árvore da castanha, representativa da região e sujeita às queimadas, daí ter sido sugerida pelos trabalhadores como elemento escultórico simbólico do massacre. No centro do monumento existe um tronco menor, no qual há uma placa gravada com os nomes dos 19 trabalhadores assassinados.

Arte e memória são permeadas pelo massacre de Eldorado do Carajás. Entre os artistas que se dedicaram ao tema encontra-se Klinger Carvalho, que, ainda em 1996, realiza em Belém a instalação Casa Temática: El Dorado, exposta no Museu do Estado do Pará. Fazendo alusão às casas de taipa existentes na região, constrói 19 túmulos-casas feitos de barro e cipó. Cada “casa” recebe uma pequena placa de vidro manchada de sangue, identificada apenas com a letra C e um número correspondente a cada corpo morto. A instalação depois se expande, ocupando a praça em frente ao edifício do museu. Marcone Moreira também criou uma obra que se reporta ao massacre, o díptico fotográfico Ausente Presença (2013), e traz a junção de duas fotografias: uma, com as marcas de pés no barro, sobreposto por outro modelado em argila; a outra foto é da placa com o nome dos 19 mortos que se encontra junto à obra de Don Baron e o MST.

Esboço do Monumento Eldorado Memória (1996), realizado por
Oscar Niemeyer a pedido do Movimento Sem Teto (MST) (Foto: Reprodução)

Em seu artigo Necropolítica (2011), Achille Mbembe confirma que esse tipo de soberania do poder político e econômico consiste em exercer o controle da mortalidade, definir em última instância quem deve viver ou morrer. Os discursos promovidos por Klinger Carvalho e Marcone Moreira manifestam-se sobre as cruéis armadilhas que geram tantos massacres e varrem do sistema da vida os que consideram indesejados, sejam trabalhadores rurais, indígenas, negros ou os pertencentes ao grupo LGBTQIA+. Na cena artística de Marabá existem organizações que atuam interceptadas pelo sentimento de indignação, estabelecendo parcerias com os movimentos sociais, criando redes de atuação. É o caso do Galpão de Artes de Marabá (GAM), que surgiu com a ideia empreendedora de Mestre Botelho, que orientava jovens aprendizes em direção a uma produção artística industrial. Antônio e Deíze Botelho, filhos do Mestre, em 1997, transformaram o espaço artístico-industrial no Galpão das Artes.

Atuando como importante agente articulador e mobilizador, o GAM passa a operar com a comunidade artística em processos de discussão e reflexão, viabilizando não somente a criação da Associação dos Artistas Visuais do Sul e Sudeste do Pará (Arma), mas também de outras associações. Antônio Botelho foi o primeiro presidente da Arma e, atualmente, Marcone Moreira ocupa a presidência.

Antigo Galpão das Artes de Marabá (GAM), criado em 1997 e hoje vazio (Foto: CORTESIA ACERVO GAM E ACERVO KLINGER CARVALHO)

Performance fluvial
O Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, em 2013, selecionou o Projeto Carajás Visuais Entre Rios e Redes, realizado pela empresa Tallentus Amazônia, coordenada por Deíze Botelho. O projeto previa o intercâmbio e a interlocução entre profissionais das artes visuais das regiões Norte e Sudeste do Brasil. Tinha como proposta a cooperação inter-regional entre Marabá e a cidade de São Paulo. Foram pensadas e realizadas três ações: o I Encontro Cultural de Carajás Entre Rios e Redes, que aconteceu em Marabá; a residência artística de Mauricio Adinolfi (São Paulo), em colaboração com Marcone Moreira, Antônio Botelho e mais 30 barqueiros da Associação dos Barqueiros Marítimos de Marabá; e a exposição Onde o Rio Acaba, com artistas de Marabá, realizada no Ateliê 397, em São Paulo.

BarcoR (2013) foi o nome dado por Adinolfi às ações desenvolvidas com os barqueiros. Estética Tocantina complementa a denominação. A culminância da ação deu-se com a performance fluvial sobre o Rio Tocantins, em que barcos encenaram o movimento da Buiúna, a Cobra Grande. Além da estética adotada, havia o propósito de refletir sobre os possíveis impactos socioambientais que grandes projetos, como o da implantação da Hidrovia Araguaia Tocantins ou da Hidrelétrica de Marabá, podem causar.

A mostra Onde o Rio Acaba teve como curadoras Camila Fialho, que esteve em Marabá para conhecer os trabalhos dos artistas da região de Carajás, e Thaís Rivitti, representante do Ateliê 397. A exposição levou para São Paulo obras de artistas e ativistas culturais do sul e sudeste paraenses. A intenção era colocar em pauta questões relevantes para a região, como a transformação do Rio Tocantins em hidrovia, visando o escoamento de minério. Os eixos curatoriais foram formados por três palavras-chave: rio, território e exploração. A abertura da exposição é acionada, simbolicamente, pela Porteira (2013), obra concebida por Marcone Moreira. Nela estão presentes o ato restritivo de permitir e proibir entradas e saídas. O campo rural muitas vezes funciona como território de conflitos de terra, como área de trabalho escravo, como solo de queimadas, de crimes ambientais.

Novas tessituras
Importante perceber a dinâmica das ações, as tramas traçadas que reverberam em novas tessituras da vida. José Viana, que morou em Marabá, conhece a gaúcha Camila Fialho, que decide deixar São Paulo e morar em Belém. Pouco depois, tornam-se parceiros e formam o Duo Raio Verde. A experiência vivida em Marabá os conduzirá à construção do S11D – Projeto de Salvaguardar Pedras, que foi apresentado no Arte Pará de 2014. A ideia era transformar uma pedra sem valor monetário em obra museal, salvaguardada em um acervo. A pedra seria coletada no Complexo Industrial de Carajás, na Serra Sul, mais especificamente na fatia de terra 11D. A intenção, revestida de humor e ironia, era de que a instalação fosse premiada e as pedras passassem a pertencer ao acervo do Arte Pará. A premiação não aconteceu.

O projeto de salvaguarda ficou frustrado, mas não por muito tempo, pois Armando Queiroz, na época diretor do museu Casa das Onze Janelas, fez um gesto afetivo de acolhimento, viabilizando o sonho da dupla. Surgiu, assim, a Exposição na Casa: Registro do Presente, concebida como regalo saído de uma mineradora para ocupar salas expositivas e depois integrar o acervo de um museu. O gesto poético dos artistas e do diretor do museu permitiu que as pedras fossem salvaguardadas.

O sistema de arte que vem se estabelecendo em Marabá repercute em outros municípios, como Canaã dos Carajás, Parauapebas, Paragominas, Eldorado do Carajás, Redenção, Conceição do Araguaia, São Félix do Xingu e Tucuruí. A primeira turma de artes da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará(Unifesspa) surge em 2014, e pode-se dizer que o curso está se transformando em polo importante nessa rede de arte que se está constituindo. Gil Vieira e Alixa Santos estão presentes desde a criação do curso. Vieira tem realizado pesquisas sobre a arte na Amazônia e dedicado muitos de seus artigos a Marabá. Desenvolve o Projeto Arquivo Digital de Artes e Culturas Visuais na Amazônia (ACVA), iniciado em 2021. O objetivo é promover o acesso digital a diferentes coleções e acervos que estarão reunidos em uma mesma plataforma de pesquisa, com download gratuito.

Cinthya Marques, fotógrafa, pesquisadora e, desde 2017, professora do curso de artes da Unifesspa, possui projetos referentes à trajetória das artes visuais nas regiões sul e sudeste do Pará. Um de seus projetos, O Nanquim de Marabá – Patrimônio e Memória na Arte de Augusto e Pedro Morbach, tem como propósito catalogar as obras desses dois artistas, representativos de uma técnica que ficou conhecida como Nanquim Amazônico. Cinthya ainda dá prosseguimento a mais três iniciativas, entre elas o Projeto Fotográfico Ver-a-Cidade, que a Galeria de Arte Vitória Barros realiza desde 2010. Inaugurada em 2002, a galeria tornou-se instituto em 2015. Há quase 20 anos funciona como espaço independente, no qual prevalece “o espírito colaborativo da comunidade artística local”, de acordo com o site do Instituto de Artes Vitória Barros (IAVB).

Ausente Presença (2013), díptico fotográfico de Marcone Moreira, com os nomes das 19 vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás (Foto: Cortesia do artista)

Valores éticos e estéticos
Estive em Marabá pela primeira vez em 2005 e, recentemente, fui convidada por Armando Queiroz para assistir, virtualmente, à abertura do 6º Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteira, que acontece em Marabá, sempre em abril, em memória do massacre de Eldorado. O evento é colaborativo e tem como criador e curador o professor Evandro Medeiros. Gil Vieira participou da comissão do festival e Cinthya Marques foi curadora da exposição virtual Adeus, Amazônia, do fotógrafo Miguel Chikaoka, que nos anos 1980/90 esteve no sul e sudeste do Pará, acompanhando as lutas pela terra, registrando as invasões aos territórios indígenas e fotografando as consequências da exploração de minérios.

Fiquei impactada com os discursos de abertura do evento, proferidospor Evandro Medeiros e Ayala Ferreira, representante do MST. Por ter presenciado esses discursos e observado a potência da programação, percebi que Marabá se abria à possibilidade de uma cena artística vigorosa, construída com valores éticos e estéticos muito próprios.

Uma rede de ações e pensamentos confirma a primeira impressão que tive sobre o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante mesmo que amalgamada a um terreno arenoso, invadido por adversidades. Todavia, algo da cena mudou: tanto o Galpão como a Associação dos Artistas Visuais enfrentam um momento adverso, cujo primeiro impasse surgiu com o falecimento de Mestre Botelho. As dificuldades foram agravadas com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira, comprometendo a realização de projetos, mas o importante para Deíze é que não afetou os pensamentos.

Os cristais muitas vezes se quebram, podendo não mais permitir a viagem espiritual de Marina Abramović, assim como o Réquiem Tropical pode mais uma vez se fazer ouvir ao som da voz de Darcy Ribeiro:

As florestas tropicais úmidas, com sua massa prodigiosa de vida vegetal e animal, habitada por povos […] armados de um saber de experiência feita de um imenso gozo de viver e de uma alegria espantosa, vão se convertendo em obsolescências num mundo caduco, cego para a vida, para o humano e para a beleza
Mesmo no atual mundo sombrio, demarcado por políticas assassinas. Mesmo que nos encontremos diante da ameaça da “queda do céu”, prevista por David Kopenawa, acredito que se possa reverter a cegueira e praticar a beleza.