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Chuva do cajuzinho, mural do artista Kboco na Galeria Cerrado [Foto: cortesia do artista]
Postado em 18/06/2024 - 4:00
Eu não comi a pamonha
Pesquisadora narra suas impressões e vivências da cena artística de Goiás em viagem para visitar a feira Fargo, o ateliê-escola Sertão Negro e outros espaços culturais

Eu cresci em uma família mineira cuja alimentação era tão importante quanto um ritual religioso e a festa junina era a celebração mais aguardada do ano. Meus avós tinham um fogão à lenha e meu avô comprava todos os ingredientes para minha avó preparar arroz doce, canjica, vinho quente e quentão, mas, acho que por ser filha de Odé, o meu prato preferido sempre foi o milho. Tudo que provém do milho é algo que agrada meu paladar: bolo, canjica, curau e a deliciosa pamonha, e como a minha avó cozinhava muito bem, é difícil encontrar em São Paulo uma boa pamonha; as daqui são sempre engrossadas com fubá e há anos procuro uma bem-feita para acionar minhas memórias afetivas. 

Recentemente, pensei que poderia encontrar e comer tanta pamonha que até passaria mal. Isso quando fui convidada, junto com meu parceiro de trabalho e amigo, o curador Cadu Gonçalves, a participar da Feira de Arte de Goiás (Fargo), que está na sua 6º edição e visa promover os negócios e o sistema das artes. Todo o processo para participar não precisa ser descrito aqui porque a questão principal era ir a um lugar onde eu poderia conhecer parte de uma cena artística e, simultaneamente, comer a melhor pamonha do país, como dizem os goianos. Pensei nas possibilidades de ativar lembranças de quando ainda era criança e de minha família, como no momento em que Babette¹ está sentada na cozinha, cansada, e as pessoas que participaram do banquete feito por ela não conseguem pronunciar quaisquer falas de agradecimento, devido ao êxtase causado pelas comidas servidas por Babette.

A viagem aconteceu em uma semana cheia de afazeres, com a participação no festival NegrArte, ao mesmo tempo em que pleiteio o Doutorado e atuo como assistente de curadoria da Pinacoteca de São Paulo. Mas essa correria seria adoçada, porque a pamonha chegaria logo mais. Ir até Goiânia acionava uma operação com questões territoriais e sistemas de um local global, e as oposições entre “cidades distantes” e “o controle do movimento”², do qual não gostaria que fossem ativadas, mesmo que o sistema o visse assim. A ida a Goiânia atrasou, e saímos direto para Sertão Negro. A chegada ocorreu no meio do ajeun, que me deixou um tanto quanto constrangida, mas a receptividade foi tamanha que o encabulamento se dissipou ao compartilhar com as pessoas falas, olhares e o alimento, preparado por Yabaces, com muito axé. Estar à mesa é, eu compreendo dessa forma, como esse momento: a comunhão, que me lembra do meu terreiro, e o júbilo, como em A Festa de Babette.

Um dia li sobre o experimentalismo na Black Mountain, onde o ensino de arte era o pontapé para chegar a outras disciplinas e outras formas sociabilizantes, da qual a própria Bauhaus foi uma progenitora. Grandes artistas contemporâneos passaram por lá, como Merce Cunningham e Robert Rauschenberg. Retomo essa breve narrativa por ocasião do encontro com um lugar que vai além disso. Sertão Negro é um ateliê-escola que não é utópico. É um espaço de formação para artistas, com práticas agroecológicas sustentáveis que se alinham ao alimento, de forma ritualística. Todas as edificações do Sertão Negro são construídas por uma técnica de bioconstrução sustentável. Deste modo, o Sertão é o negroceno, um conceito estabelecido por Malcom Ferdinand, que expõe um pensamento contemporâneo como um espaço possível, onde a arte é o ponto de partida.

 

Visita ao ateliê aberto do Sertão Negro durante a FARGO24 [Foto: Sertão Negro / Mayara Varalho]
Queria ter ficado mais, mas precisávamos seguir para a Fargo. Fomos bem recepcionados e nos sentamos para iniciar nossa fala. Confesso que não imaginei o número considerável de público presente e que queria nos ouvir. Foi interessante observar a possibilidade da inversão da lógica local global, ocupada pelas grandes metrópoles e operada por um sistema de agentes da arte que estão em destaque, enquanto outros re-existem nos bastidores, até o momento em que o sistema, talvez um dia, os eleja. Deste modo, ir a uma outra cidade onde a operação se inverte me deixou em um estado de surpresa, uma surpresa boa, que poderia ser lida como timidez ou altivez.

Quando a fala terminou, confesso que não via hora de poder sentar e comer a sonhada pamonha, mas caminhamos pelo espaço e conhecemos a Fargo. Uma feira pequena onde se tem contato com um pouco do sistema das artes de Goiânia. Onde se vêem muitos jovens, sejam artistas ou os almejantes do “grande” cargo de curador. Vimos colegas de trabalho e galerias com que mantemos contato em São Paulo e uma pesquisa de artistas que a megalópole desconhece. A feira congrega um pouco de tudo, mobiliário, galerias, moda e design.

Próximos de sair da feira, fomos ao stand da galeria Cerrado, que nos recebeu calorosamente, e opera com um time de artistas da região do Centro-Oeste. Ainda não seria esse o momento de comer minha pamonha, então seguimos para o espaço da galeria, que atua entre um sistema de mercado secundário e primário. Fiquei abismada com seu belo espaço arquitetônico. A mostra de Miriam Inez da Silva me impressionou, as figuras e o sintético foram evidenciadas pelo curador Divino Sobral. Ao mesmo tempo, pude ver a potência gráfica de Kboco e a profundeza de Farnese. Uma pergunta restava: quando eu saísse, poderia finalmente comer a desejada pamonha? Tive uma leve desconfiança de que a resposta seria negativa, então, fomos para o hotel e de lá para um jantar. O cansaço estava gritando, mas sabia que teria que aproveitar a possibilidade de Goiânia. Vale constar que, antes de ir para a galeria, colegas de trabalho nos informaram que deveríamos ir a um espaço experimental onde estariam agentes e artistas goianos. 

Chuva do cajuzinho, mural do artista Kboco na Galeria Cerrado [Foto: cortesia do artista]
Pegamos um carro de aplicativo e no trajeto pensei que não ia comer pamonha ou talvez pudesse concretizar meu desejo na volta, mas vi que a cidade dormia cedo e com isso as pamonharias também.  Chegamos ao Rumos, estava cheio, havia bebida e música ambiente. Nos informaram que havia uma exposição do artista Cius Lopes no fundo do espaço, um artista abstrato e com uma linha muito gráfica. Vimos a exposição e nos dirigimos à frente da casa, onde encontramos  artistas jovens e a latência da produção artística contemporânea de Goiás, como o Grupo Empreza e Alice Lara. Alice, na verdade, acompanhou todo o nosso percurso na cidade e foi uma grande anfitriã. Já o encontro com o Grupo Empreza, tão importante no debate da materialidade artística e performativa brasileira e um grupo que estudei na minha graduação, confesso que foi inacreditável. Ao fim, o cansaço prevaleceu e retornamos ao hotel. A pamonha? Dormi sem ter sentido o gosto dessa importante produção local que tanto aprecio.

Me levantei no sábado de manhã para retornar a São Paulo, desci para tomar o café da manhã e, finalmente, havia pamonha disponível para meu deleite. Como estava perto do horário de saída, comi rapidamente. Ainda não era o que procurava na iguaria, porém, diferentemente de São Paulo, não havia fubá. Segui para o aeroporto sem provar a tão imaginada pamonha. Vi, nessa curta estadia em Goiânia, uma produção e sistema artístico local em potência, que precisa ser mais pesquisada para ser narrada tal como deve ser. Sobre a pamonha, concluo que talvez, eu não a tenha experimentado porque seja como Phillipa diz a Babette: “não é o fim”. A pamonha é o início do mergulho na cultura artística de Goiás.

1. Blixen, Karen. A Festa de Babette, p. 36.
2. Santos, Milton. A Natureza dos Espaços, p. 184.

Ana Paula Lopes é Mestre em História da Arte na Unifesp (2022) e integra a equipe de pesquisa e curadoria da Pinacoteca de São Paulo.