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A instalação Apropriação - Mesa de Bilhar D’Aprés O Café Noturno, de Van Gogh, criada por Hélio Oiticica em 1966 (Foto: Ares Soares)
Postado em 03/03/2016 - 5:44
O racional e o indomesticável
Exposição atesta a potência da obra de Hélio Oiticica como manancial de proposições e relações com a arte moderna e a arte contemporânea
Mario Gioia

Hélio Oiticica – Estrutura Corpo Cor, exposição dedicada ao seminal artista carioca que cada vez ganha mais espaço no contemporâneo internacional, atesta com robustez como sua obra pode ter variadas configurações, pontuada por trabalhos potentes ainda não tão conhecidos e que se tornam um manancial quase inesgotável de proposições e abordagens para quem lida com arte hoje. Longe do eixo Rio-SP – na Fundação Edson Queiroz, em Fortaleza –, a mostra, com curadoria apurada de Celso Favaretto e Paula Braga, exibe cerca de 50 peças e consegue não ser prejudicada pela antologia de grande monta que chega em outubro ao Carnegie Museum of Art, em Pittsburgh, e itinera ainda por duas importantes instituições dos EUA, o Whitney, em Nova York, e o Art Institut, em Chicago.

Por uma saudável coincidência, o Penetrável Macaleia (1978) recebe ainda mais atualidade por sua grade de influência “mondrianiana” (o artista holandês é foco de raro recorte com suas obras no Brasil, em cartaz agora no CCBB paulistano). Nela, o carioca novamente mescla com habilidade as referências da modernidade, por meio do uso da paleta do mestre do neoplasticismo, com os ambientes tão diversificados que criou, gerando profícuas relações entre a forma e a vivência, o erudito e o popular, o racional e o indomesticável. Tal perturbação inquieta todo o espaço expositivo, seja pelas experiências ainda REVIEWS bidimensionais que Oiticica aplica em subversivas práticas no quadro, tanto nas geometrias escuras e mais unidas que pontuam telas feitas à época do grupo Frente (nos anos 1950) quanto na forma que já registra um movimento para além do espaço contido em Seco 27 (1957) e também nos celebrados Metaesquemas (anos 1950).

“Estou possuído”, escreve ele em um dos Parangolés (o P17, Capa 13, de 1966-1979), destinado à utilização do público, que também poderá elaborar ação similar à que deu origem ao Contra Bólide Devolver a Terra à Terra, de 1979, embaralhando as noções de espaço expositivo e de jardim, dormir nos colchonetes de Cosmococa CC1 Trashiscape (1973), e disputar uma animada peleja de sinuca na instalação Apropriação – Mesa de Bilhar D’Après “O Café Noturno” de Van Gogh (1966), por exemplo.

“Meu trabalho não é nem arquitetura nem escultura e nem pintura no sentido antigo”, diz Oiticica em entrevista a Vera Martins, no ano de 1961. Em Estrutura Corpo Cor, isso fica muito claro numa peça mais silenciosa, mas que intriga a cada nova visada – o Bilateral Equali (1959). A obra testa os limites da pintura e do tridimensional e, segundo o artista, relaciona-se com a música, mas não tem a ver com “contrapontos ou eurritmia”, e sim com a essência de tal linguagem. Num dos Núcleos (o NC5, de 1960), esse borrar de suportes cada vez mais se sedimenta numa passagem leve do público no entorno da peça ou por meio de uma sorrateira corrente de ar que invade a sala. “É, na verdade, a integração dos elementos cor, tempo e espaço numa nova estrutura”, frisa o artista, morto em 1980.

Já a simplicidade é pungente em alguns Bólides, como o Topological Ready-Made Landscape Nº 4, feito somente de uma forma de alumínio, areia e de um fundamental quadrado em vermelho. De 1978, faz um tributo a Lygia Clark (1920-1988), outro nome incontornável da visualidade brasileira, mas também pode se relacionar a Malevich (1878-1935), um dos diversos nomes-chave da história da arte mundial, que, na mostra em Fortaleza, ganha uma reinvenção tropical. Também não se pode deixar de vislumbrar desdobramentos mais históricos – pensemos em Cildo Meireles e Antonio Manuel, entre outros – e recentes – com Paulo Nazareth e os provocativos percursos, por exemplo.

Hélio Oiticica – Estrutura Corpo Cor, até 1º/5, Espaço Cultural Airton Queiroz, Universidade de Fortaleza (Unifor)