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Rio Doce - Urucum sobre Corpo, de Caetano Dias (Foto: Divulgação/ Caetano Dias)
Postado em 17/05/2021 - 10:00
Antropofagia em questão
A Semana de 22 se aproxima de seu centenário e a seção de crítica da revista The Brooklyn Rail problematiza o debate sobre arte moderna

Um lugar-comum ao longo da arte moderna é a busca por um “outro” que revigore e permita uma autocrítica das próprias tradições.No caso brasileiro, no contexto paulista, especificamente, essa alteridade era o indígena, usado pelo grupo em torno de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral como forma de resistência à hegemonia cultural europeia. Ainda que o projeto dos artistas, poetas e músicos modernos tivesse radicalidade, seus limites de classe e as narrativas muitas vezes homogeneizantes sobre suas produções passam por crescente revisão na medida em que a Semana de 22 se aproxima de seu centenário.

Um dos projetos que problematizam esse debate é a seção de crítica da revista The Brooklyn Rail, lançada em fevereiro e coeditada pela escritora norte-americana Sara Roffino e pelo artista brasileiro Tiago Gualberto. Já no título da edição há uma torção da afirmação modernista, que é colocada no interrogativo: Só a Antropofagia nos Une? A diversidade de vozes e registros ao longo dos textos permitem um olhar nuançado para a questão. A ideia de deglutição do outro para a formação de si encontra contextualizações de classe, raça e poder que expõem tensões presentes, mas muitas vezes sublimadas, do circuito artístico.

Além de introduzir a história da arte no Brasil para um público internacional, a seção reconhece a antropofagia como um assunto que tange diferentes áreas da experiência cultural no país, mas problematiza as narrativas em torno do assunto. “Não podemos fazer a celebração de um primitivismo de cem anos atrás”, diz Tiago Gualberto, evocando o texto “Antropofagia: Um Futuro Primitivo no Brasil de Cem Anos Atrás”, de Renato Araújo da Silva, presente na edição. Os editores começaram sua interlocução em 2018, quando, devido à retrospectiva de Tarsila do Amaral no MoMA-NY, Roffino ficou espantada com a pintura A Negra (1923). Para ela, a exposição demonstrou uma visão reducionista sobre o modernismo no Brasil, com aspectos racistas e idealistas, e decidiu então pesquisar artistas brasileiros que estavam pensando criticamente o período, em busca de contranarrativas ao discurso institucional. “O diálogo Norte-Sul acontece em uma só direção, mas podemos inverter esse fluxo”, diz Sara Roffino à seLecT.

No site da revista é possível acessar os textos em português e inglês, verificando, inclusive, as diferenças de pensamento condicionadas pela língua e os limites impostos pela tradução. A versão impressa que é distribuída para a comunidade artística de Nova York, no entanto, é apenas em português, reforçando as barreiras linguísticas, mas também questionando o international art english que domina as publicações nesse campo.

Pluralidade de registros
Só a Antropofagia nos Une? inclui análises acadêmicas, poemas, entrevistas e textos com tom marcadamente oral. Em ensaios escritos apenas com letras minúsculas, o artista rafael amorim – que usa a não hierarquia entre as palavras em toda a sua produção, eliminando as maiúsculas, inclusive de seu próprio nome – revisa a dimensão nacionalista das atrocidades cometidas por Bolsonaro. O poeta Sergio Vaz lança o Manifesto da Antropofagia Periférica e Denilson Baniwa apresenta o poema ReAntropofagia.

O artista Caetano Dias publica um texto composto de apropriações e torções de referências que discutem a ideia de brasilidade, do poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, à música Ideologia, de Cazuza, expondo violências e desigualdades persistentes na história do país. Comentando o aspecto indigesto do modernismo brasileiro para as populações indígenas e negras que serviram de tema para aqueles artistas, o artigo “A qualquer hora carne dura” coloca em conflito visões idílicas e negativas sobre o Brasil, embaralhando diversas temporalidades que se interconectam. O texto é parte da pesquisa de Caetano Dias – que é conhecido por produzir esculturas comestíveis, em que a figura humana é construída com açúcar e rapadura – sobre as dimensões simbólicas, políticas e físicas de alimentar-se do outro.

Poucas páginas separam o texto do professor de história da arte Luiz Renato Martins, sobre a dimensão rebelde da obra de Antonio Dias, e o relato do pichador Cripta Djan, sobre as violências que sofreu ao intervir nas paredes brancas da 28ª Bienal de São Paulo. “Os curadores haviam dito na mídia que o espaço estava aberto ao diálogo com a sociedade, aberto a intervenções urbanas. Nos sentimos convidados”, relata Djan.

Capa da publicação Só a Antropofagia nos Une? (Foto: Divulgação)

Revisão epistemológica

Essa reunião de discursos legitimados e marginais mostra dimensões menos óbvias ou menos domesticadas da ideia de antropofagia, para além do clichê. Há uma revisão do modernismo paulista, mas também fica clara a crítica às novas formas de autoexotização da arte produzida no Brasil.

A presença de artistas periféricos nessa discussão, no entanto, não se reduz a uma reivindicação por representatividade. Há, inclusive, uma crítica da teatralização de dissidência ou das cotas de diversidade que assombram o circuito artístico atualmente. Além de escapar das categorizações a que esses intelectuais e artistas são submetidos, existe o cuidado em não reforçar os lugares em que colocamos o “outro”. “As instituições celebram uns poucos artistas negros e indígenas, porque eles satisfazem o paladar sobre o que se espera deles”, diz Tiago Gualberto.

A revista propõe uma revisão do próprio campo da arte, que, mesmo com pautas progressistas, acaba reproduzindo dinâmicas de exclusão e desigualdade. Há uma reflexão sobre o papel das instituições e dos lugares estabelecidos de conhecimento na construção do que se compreende como arte brasileira e a variedade de vozes aponta como os aspectos problemáticos da história precisam ser vistos por diferentes ângulos, estabelecidos ou não. “O que é canibalismo para uns é inescapável para outros”, escreve a roteirista Thays Berbe.

As múltiplas narrativas em torno da experiência da antropofagia e do modernismo geram um conjunto de textos sem celebração, mas também sem rancor, reconhecendo a importância e os limites conceituais daquela premissa ao longo da história. Iniciado como uma publicação de caráter explicitamente experimental e fragmentário, o projeto abre espaços para uma série de reflexões e ações, marcando sua relevância a longo prazo.

Serviço
Publicação
Só a Antropofagia nos Une?
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