icon-plus
Foto: Apu Gomes / Folhapress
Postado em 29/11/2012 - 3:18
Crônica de um assassinato urbano
Projeto Nova Luz vem para promover a “revitalização” urbanística da Cracolândia, concedendo-a “limpinha” para que construtoras realizem seus empreendimentos
Raquel Rolnik

O nome já carrega o estigma: lugar de viciados em crack, decadente, degradado, marginal. A que lugar estamos nos referindo? Ao bairro mais antigo da cidade de São Paulo, Santa Ifigênia, onde fica parte da chamada Cracolândia. Esse é o único bairro que ainda preserva traços de uma morfologia urbana do século 18, de lotes compridos e estreitos, nos quais se encaixam sobrados com grandes aberturas no andar térreo e segundo e terceiro andares avarandados.

Santa Ifigênia combina o mais antigo e o mais novo dos devires urbanos: sobre essa trama de uma São Paulo desaparecida está instalado e potente o maior polo de eletrônica da América Latina, onde podem ser encontrados os últimos gadgets da parafernália eletroacústica digital a preços competitivos. Nesse mesmo lugar, em um ponto atrás da trajetória presente, habitava a “boca” paulista, polo de produção de cinema em suas múltiplas derivações.

Como esse lugar – desde o século 19 – era ponto de chegada de trens e, desde os anos 1940, de ônibus interurbanos, sua apropriação foi marcada também pela presença efêmera e permanente dos viajantes, dos que passavam rapidamente e dos que vinham para ficar. E mais: moradores, muitos, de vários tipos, idades e condições, constituindo um tecido vivo em permanente transformação.

Até que um dia, alguém achou que o bairro precisava ser “revitalizado”. Sem dúvida, esse, como todos os outros pedaços da cidade, necessita de investimentos permanentes na manutenção e reforma de sua infraestrutura, na adaptação de sua trama a novos usos e na preservação dos valores que ali estão gravados. Entretanto, a ideia de “revitalizar”, ao contrário dos processos que acabamos de descrever, tem como pressuposto a ideia de que o bairro está morto e, portanto, deve ser desconstituído para ser reconstruído.

Crack2
Foto: Apu Gomes / Folhapress

É exatamente disso que trata o projeto Nova Luz, que, para fazer o que pode e deve ser feito todos os dias e em todos os lugares da cidade – cuidar, proteger, reformar, manter, atualizar –, propõe a destruição do lugar para ressignificá-lo, destinando-o para outrem. Constituir a Cracolândia foi essencial justamente para construir a ideia de “bairro morto” e essa operação foi minuciosamente construída pela prefeitura e governo do estado de São Paulo.

Sigamos então os passos dessa operação. Passo 1: o abandono – a deficiência na coleta de lixo, a falta de cuidado com as ruas e calçadas, a falta de manutenção nas instalações e equipamentos públicos vão degradando fisicamente a região. Passo 2: fechamento, pela prefeitura, do Shopping Fashion Luz, que gerava um enorme movimento comercial, semidemolindo sua estrutura e transformando esse espaço, semiabandonado, em polo de atração de pessoas semiabandonadas.

Evidentemente, o problema das pessoas viciadas em crack não é urbanístico; precisa ser enfrentado no âmbito da assistência social e da saúde mental, campos onde existem estratégias e profissionais capacitados para cuidar dessas pessoas que, pelas mais diversas razões, acabaram numa situação-limite entre a vida e a morte. Mas, no fim de 2011 (passo 3), a imprensa noticiou as intenções do governo estadual e da prefeitura de se livrar da população viciada em crack, enviando os envolvidos para suas cidades de origem.

Nsenhora
Foto: Apu Gomes / Folhapress

Em janeiro deste ano, a Polícia Militar iniciou uma ação de “limpeza” na região que durou 14 dias. Mais de cem usuários de drogas e frequentadores da região foram presos de forma truculenta. Ao mesmo tempo, o projeto Nova Luz abre espaço para que um processo massivo de demolições – que
associa claramente a demolição do espaço físico à eliminação do “problema” da Cracolândia – seja empreendido, destruindo mais de 60% dos edifícios da área. Assim, o projeto vem para promover a “revitalização” urbanística da Cracolândia, concedendo-a “limpinha” para que construtoras realizem
seus empreendimentos.

A partir dessa leitura que identifica a região como Cracolândia, o projeto pretende apagar da paisagem e da vida urbana de parte do centro de São Paulo os usuários de drogas e, com eles, toda a população em situação de rua, o comércio, os mais de 12 mil moradores do bairro de Santa Ifigênia, sua história e sua memória. Remover lojistas e moradores para demolir o bairro, a fim de erguer edifícios mais altos, tem a  ver com uma estratégia de renovação urbana baseada em um conceito de parceria público-privada, no qual é necessário garantir uma alta rentabilidade para viabilizar o negócio.

Sob essa lógica, portanto, o melhor é demolir o máximo possível para construir um modelo de ocupação do solo totalmente distinto do existente
e mais atraente às tipologias de construção mais aderentes ao mercado. Isso nada tem a ver com respostas ao problema do vício do crack. Entretanto, comerciantes da região de Santa Ifigênia, moradores e apoiadores procuram, desde o tecido vivo existente, resistir a esse projeto (passo 4) de  extermínio da área. Como este, que é um conflito de projeto de cidade, saúde e cidadania, vai terminar só os próximos anos dirão.

Artigo publicado na #select8.