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Stills de Arquivo Fantasia (2017), trabalho de Dias & Riedweg em que folhas de contato p&b de Charles Hovland foram recriadas em animações de vídeo digital (Fotos: Dias & Riedweg)
Postado em 22/02/2019 - 10:46
Dias & Riedweg: CameraContato – fotografo suas fantasias sexuais
O fotógrafo Charles Hovland, que registrou as fantasias sexuais de anônimos nova-iorquinos, é tema de trabalhos de Dias & Riedweg
Maurício Dias

Desconfio do valor da palavra gênero. Desconfio que ela seja, sobretudo, um nome criado pela infelicidade de alguns para falar da felicidade de outros. Serve, mas não resolve, e talvez atrapalhe. É difícil falar de sexo. Sexo incomoda, amassa a roupa, deixa mancha… pode ser duro ou ir fundo demais para caber em explicações e ser feito ou dito às claras. Aí o gênero serve, mas não gosto dessa palavra. Não tem sexo nela, não tem classe. Tem muita coisa e muita gente sem sexo e sem classe. E é importante garantir classe e sexo em todas as classes sociais, sobretudo em épocas eleitoreiras, ainda que a última edição da Bienal de São Paulo tenha preferido inutilizar o senso e a existência de urgências e se manter no território das afinidades. Afinidade é importante, mas talvez elimine aquilo que temos de melhor, o potencial da diferença, que irremediavelmente vem à tona quando tratamos de sexo e de classe. O respeito à diferença garante o sexo com classe e a classe com sexo, o sexo de todas as classes e a classe de todos os sexos.

Foi para focar em diferença que eu e Walter Riedweg fizemos recentemente uma série de trabalhos que intitulamos CameraContato. São trabalhos sobre a vida e a obra de um amigo nova-iorquino chamado Charles Hovland, que também se apresenta como Chuck por achar que o nome Chuck é mais viril do que Charles. Hovland é um fotógrafo que atingiu sua maior expressão de virilidade artística no mundo pornô.

Cena do filme Esperando um Modelo, de Dias & Riedweg, sobre a vida e o trabalho do fotógrafo americano Charles Hovland

A história começa quando ele decide deixar a fazenda dos pais, no interior do estado de Minnesota, em busca de sexo e arte, e se instala em Nova York. Ele era pintor, mas rapidamente passa da pintura à fotografia pela simples razão de que precisa de menos espaço para fotografar do que para pintar. Para Hovland, espaço é muito caro em Nova York. Um dia, um amigo pediu-lhe que o fotografasse nu para que pudesse usar as fotos em resposta a um anúncio pessoal, de contato, típico das últimas páginas dos jornais dessa época. Essas páginas eram as predecessoras do Tinder, Grinder etc. Ele atendeu o amigo. Outros amigos vieram e pediram o mesmo. Hovland descobriu que poderia fazer desse ofício um ganha-pão, usar sua câmera para atender à busca de contato com o outro.

Anúncio publicado por Charles Hovland no jornal Village Voice

Durante 20 anos, ele publicou um mesmo pequeno anúncio nos jornais de Nova York, entre eles o recentemente extinto e já saudoso Village Voice. O anúncio dizia: “Fotografo suas fantasias sexuais. Preços moderados. Número de telefone”. Entre 1980 e 2000, Hovland registrou as fantasias sexuais de anônimos nova-iorquinos em cerca de 3 mil filmes fotográficos negativos de 35 mm em preto & branco. Anônimos de todos os sexos e classes, que encontraram em sua câmera um porto seguro para seus desejos; um contato seguro em tempos em que a Aids se anunciava e se propagava; uma câmera de contato, enquanto o próprio Hovland participava da fundação do grupo Act Up e de diversas campanhas ativistas.

Arquivo Fantasia
Arquivo Fantasia (2017) é
uma videoinstalação em cinco canais feita a partir da digitalização de centenas de negativos e folhas de contato de fotografia analógica de Charles Hovland. A edição em vídeo digital nos permitiu materializar o processo químico de passagem do negativo ao positivo, bem como servir de metáfora à passagem da fantasia à imagem e ainda dar forma ao momento de transformação da fotografia analógica em digital. O áudio é composto de anotações escritas e lidas pelo próprio Hovland sobre as sessões fotográficas. Ele aproxima-se bastante de um novo tipo de arquivo, sugerido pelo filósofo Paul B. Preciado no livro Manifesto Contrassexual. Em vez de ser definido por nome, gênero e nacionalidade, aqui o sujeito é identificado apenas pela data do encontro, fantasia sexual e quantia de dinheiro paga ao fotógrafo.

Arquivo Romance
Entre as diversas pessoas que Charles Hovland fotografou em resposta ao seu anúncio, uma delas era um editor de revistas de nu masculino. Ele propôs a Hovland que buscasse e fotografasse modelos para as publicações. O fotógrafo veio a revelar cerca de 1,5 mil modelos e produziu cerca de 450 mil fotografias em cor para revistas de nu masculino da época. Realizamos a videoinstalação Arquivo Romance (2018) a partir da refilmagem em vídeo dos layouts de Hovland para essas revistas, tendo um caleidoscópio entre a nossa câmera e suas imagens impressas. O caleidoscópio estilhaça, fragmenta as imagens originais e reproduz o jogo de espelhos da câmera analógica, causando a fragmentação do foco e a desconstrução da imagem. Para acompanhar essa espécie de dança de fragmentos de corpos, editamos uma trilha sonora a partir de trechos de músicas populares dos anos e dos locais onde Hovland produziu suas fotos.

Nosso interesse em sua obra e vida, bem como pela maior parte dos temas, pessoas, atores-autores que encontramos ao longo dos 25 anos de nosso trabalho em duo, deve-se, sobretudo, à nossa empatia por essas mesmas pessoas e temas. Não por aquilo que se classifica burramente como curioso e desgraçadamente como aberração, mas sim por elas representarem DIFERENÇA. Porque é na diferença que vemos uma maior possibilidade de beleza e transformação.