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A ultrajovem Mc Soffia, 11 anos, é orientada desde cedo pela mãe, a militante feminista Kamilah Pimentel, a pensar seu papel como mulher negra dentro da sociedade (Foto: Helena Wolfenson)
Postado em 17/02/2016 - 10:00
Meninas superpoderosas
Na música, na escola ou no esporte, a nova cara do feminismo é combativa e mostra que a militância começa cedo
Luciana Pareja Norbiato

Elas não têm medo de briga e começam cedo a se organizar em ações de empoderamento da mulher. As meninas superpoderosas do feminismo entram na luta por igualdade turbinadas pelas redes sociais, onde articulam grupos e ideias. Na onda das grandes conquistas do século 20, como o direito ao voto, o ingresso no mercado de trabalho, o divórcio e a livre sexualidade, elas sabem que ainda há muito por fazer.

Para Soffia Gomes da Rocha Gregório Correa, 11, ou só MC Soffia, como ficou famosa, a mãe e a avó (ambas mães solteiras) têm papel fundamental em sua consciência feminista e racial. Kamilah Gomes Pimentel, a mãe, a teve aos 18 anos e não quis casar com o pai da menina.“Quando ela nasceu, minha mãe já era atuante na militância. Participávamos de eventos para discutir a questão da mulher e fazer o recorte racial da mulher negra. São lutas contra muitas coisas iguais, mas (as mulheres negras) temos muitas questões nas quais precisamos avançar e que são diferentes. Então esse foi um caminho muito natural paraSoffia”, diz Kamilah à seLecT.

Aos 7 anos, a menina participou de oficinas de hip-hop e de MC (a voz do rap) na Livraria da Esquina, espaço cultural da Barra Funda, SP. Fez uma rima e pediu para a mãe levá-la para cantar em saraus, até chegar a participar do show no aniversário de São Paulo, no Anhangabaú (2011). Ela tinha dez minutos para se apresentar, mas o refrão, sempre o mesmo, só tinha dois minutos. “Como eu era pequena, nem nervosa fiquei, dancei mais que tudo”, lembra Soffia. Atualmente, ela compõe as próprias letras com a ajuda da mãe, que sugere rimas e acerta a métrica. “Mas as ideias são todas dela”, diz Kamilah. Todas sobre mulheres negras conscientes e felizes com sua beleza natural. “Fico muito animada, porque estou passando a ideia de empoderamento para as outras meninas, para que o mundo mude com a ajuda das minhas músicas e para que o racismo e o machismo acabem”, define.

Kamilah fala sobre o futuro para a menina. “Eu a oriento para profissões como medicina, direito e engenharia, porque a população negra precisa de representantes nessas áreas.” Soffia quer ser cardiologista e pesquisa muito, graças também à sua escola-modelo, o Projeto Âncora, cuja didática sem divisão por séries tem atividades que buscam desenvolver como um todo as capacidades individuais dos alunos.

Educação como consciência
O ambiente escolar também foi o berço da conscientização do Coletivo Quaerere, formado no começo de 2015 por alunos do 3º ano do Colégio Oswald de Andrade, de SP. “Notávamos que mesmo na escola havia muita gente que não tinha consciência da questão da diferença entre gêneros, e a abordagem em palestras de assuntos como doenças sexualmente transmissíveis e gravidez era sempre técnica”, diz a estudante Ana Carolina Yamamoto à seLecT. Com ela, formam o coletivo Julia Meneghelli, Luiza Souza, Mariana Marques, Helena Gonçalves, Camilla Delouya, Julia Andrade, Isadora Claro Ambrósio e Catarina Sarkovas e Cesar Costa (único menino do grupo), todos com 17 anos.

Da direita para esquerda, Mariana Marques, Julia Meneghelli, Ana Carolina Yamamoto, Cesar Costa e Luiza Souza formaram um coletivo para falar sobre a diferença de gêneros dentro do colégio (Foto: Helena Wolfenson)
Da direita para esquerda, Mariana Marques, Julia Meneghelli, Ana Carolina Yamamoto, Cesar Costa e Luiza Souza formaram um coletivo para falar sobre a diferença de gêneros dentro do colégio (Foto: Helena Wolfenson)

“Achamos que seria legal falarmos de machismo por essa lacuna de informação, mas não sabíamos muito de que forma fazer”, diz Mariana Marques. Como entrar nas classes falando de temas que não dominavam? “Todo ano, o colégio faz o Rupturas, que são debates sobre um tema diferentea cada edição. Nosso professor, Kadu Braga, sugeriu que organizássemos a edição de 2015 no lugar dos professores, e ele nos ajudou. Não imaginávamos que daria tanto trabalho”, conta Julia Meneghelli. Entre cancelamentos, imprevistos e a ansiedade da realização de um evento grande, conseguiram fazer com que os alunos aderissem maciçamente às atividades. Entre os temas propostos: o empoderamento das mulheres, a desmarginalização da transexualidade, uma sessão do filme Que Horas Ela Volta? seguida de bate-papo com a diretora Anna Muylaert, e a desconstruçãodo machismo – evento só para meninos –, contribuição de Cesar Costa à programação. “Minha irmã, que é seis anos mais velha, era feminista desde cedo e sempre me orientava nesse sentido. Para mim, é muito natural enxergar as mulheres de forma igual, não ter preconceitos”, diz Cesar. Com o fim do ano, o grupo também terminou o colégio e passa por uma “crise institucional”: “Ainda não sabemos como vamos continuar o coletivo, que formato vamos dar a ele. Mas, com certeza, temos vontade de prosseguir”, diz Luiza Souza.

Mexeu com uma, mexeu com todas
Foram as companheiras do curso de Letras na USP que abriram os olhos de Aline Oliveira, 20, para a condição de desigualdade das mulheres. “Milito há cerca de três anos”, conta ela à seLecT. Mas foi o estupro de uma moça na cabine do Bilhete Único do metrô República, em abril do ano passado, que a motivou a começar, ao lado de mulheres de várias idades, o Frente contra o Assédio, movimento autônomo e sem liderança que já promoveu quatro atos públicos em lugares como estações de metrô na capital paulista e realiza rodas de conversa, muitas delas em escolas. “Passei minha vida vendo meu padrasto bater na minha mãe, mas era criança, tinha medo. Há um tempo atrás, ele foi um dia em casa pegar um documento e torceu meu braço quando eu desci no lugar da minha mãe para entregá-lo. Falei que era isso que eu estava esperando, porque agora ele seria processado por mim. Ele nunca mais apareceu”, conta Aline. Ela também ressalta a necessidade da distinção da luta da mulher negra,“mais oprimida que a mulher branca”.

O principal alvo da Frente contra o Assédio é a pouca importânciadada aos casos de abuso sexual no transporte público. “Já fizemos ações de distribuição de alfinetes, por exemplo, porque estimulamosas mulheres a se protegerem mutuamente e a reagirem, seja com uma cotovelada, um empurrão, ou pedindo ajuda às outras. O nosso lema é ‘Mexeu com uma, mexeu com todas’.” Além de conscientização, a escola e a universidade propiciam articulação. Um exemplo disso foi a participação maciça das meninas nas ocupações em escolas estaduais, contra a reorganização proposta pelo governo de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo. Outro fato relevante é a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), entidade com forte atuação nessas passeatas, ter hoje uma presidenta, Camila Lanes, 19.

“Temos ouvido nas rodas de conversa nos colégios ocupados que as meninas estão na linha de frente das manifestações. Enfrentam as instituições, a polícia, são supercombativas. Até porque elas amadurecem antes dos meninos, que estão em outra dinâmica na adolescência”, diz a advogada Anna Haddad, 29, que administra há cerca de cinco meses o Comum.vc (www.comum.vc), ao lado da jornalista Carol Patrocínio, 30, e da gestora ambiental Giovana Camargo, 26. O site tem um fórum virtual, espaço de acolhimento de mulheres de todas as idades. Para as criadoras, fica clara a diferença de postura das mais jovens com relação ao feminismo. “Há uma dinâmica totalmente nova entre as meninas, graças à web e às redes sociais. O pessoal começa a compartilhar, a expor questões pessoais desde cedo, então tudo está muito às claras”, diz Giovana. Como o fórum é voltado para mulheres de todas as idades, as experiências das mais velhas ajudam a identificar apuros pelos quais passam as mais novas, e vice-versa. “As meninas descobrem caminhos únicos de lidar com as situações (machistas), com o mundo, com seu corpo, com as cobranças sociais e todas as dúvidas. A adolescência é um momento muito difícil e, se você é mulher, é três vezes mais, porque, além de todasas questões, ainda tem de ser perfeita”, diz Carol.

Da esquerda para a direita, Anna Haddad, giovana Camargo e Carol Patrocínio, que juntas formaram um fórum de acolhimento para mulheres na net (Foto: Helena Wolfenson)
Da esquerda para a direita, Anna Haddad, giovana Camargo e Carol Patrocínio, que juntas formaram um fórum de acolhimento para mulheres na net (Foto: Helena Wolfenson)

Esporte radical
Atuar em uma área não considerada “de menina” também quebra paradigmas. Que o diga a carioca Bia Sodré, 20, skatista desde os 13. “Antigamente, tinha muito preconceito, mas as meninas começaram a ganhar visibilidade e isso vem mudando”, conta Bia à seLecT. O convite para a profissionalização veio com o fim do ensino médio e uma viagem à Europa, onde participou de campeonatos que lhe garantiram bons resultados e a atenção da escolinha de skate ondecomeçou, que passou a patrociná-la.

Ela e suas amigas vão juntas às pistas, alterando a cena predominantemente masculina. Com a vitória em campeonatos de meninas no bowl (pista côncava arredondada) e mistos no vertical (o pipe alto ainda tem pouca adesão de meninas, que por isso competem com os meninos), ela abre caminho no esporte radical para as futuras gerações. “Fico muito feliz de saber que há meninas mais novas que se inspiram em mim, como eu me inspirei na Karen Jonz (skatista campeã norte-americana, de 30 anos). É importante passar a ideia de que esportes radicais não são ‘coisa de homem’, as mulheres têm a mesma habilidade.”

 

 

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