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Detalhe da instalação Carmen Miranda - Uma Ópera da Imagem (2010), de Laércio Redondo. A obra é composta por elementos que remetem às influências afro-brasileiras assimiladas pela cantora, na construção de sua personagem, e por espelhos, que funcionam como metáforas de um olhar multifacetado sobre a história (Foto: Sergio Araújo)
Postado em 05/02/2016 - 10:00
Feminismo em campo expandido
Artistas tratam da discriminacão contra singularidades e da desconstrução da noção tradicional de gênero
Paula Alzugaray

“O Parque do Flamengo, às margens da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, surgiu sobre um imenso aterro. Primeiro, na década de 50, um morro inteiro foi desmanchado e espraiado por sobre 1,2 milhão de metros quadrados de área destinada a ser espaço público. Depois, foi uma mulher, Carlota de Macedo Soares, a Lota, arquiteta e urbanista autodidata, quem teve a ideia de edificar uma natureza por sobre a que lá já existia e que era apenas o mar. Por fim, sobre o aterro, e para onde haviam sido projetadas apenas autopistas, pela vontade e empenho de Lota, surge um parque, e bem no começo de um dos períodos mais nefastos da história do Brasil, o golpe que instaura uma ditadura militar, em 1964. Com o passar do tempo, o Parque se dissociou de Lota. Seu nome foi como que apagado, soterrado na memória coletiva da cidade (…)”.

No texto que integra a videoinstalação Desvios (2015), Laercio Redondo e Soraya Guimarães Hoepfner propõem a reconstrução da memória de uma personagem desaparecida do imaginário brasileiro. No filme, inseridas em black frames, frases interrompem o plano-sequência realizado no trajeto de uma hora que separa o Parque do Flamengo e a Casa Samambaia, os dois maiores projetos e realizações de Lota de Macedo Soares (1910-1967). Nas entrelinhas da discussão proposta aqui – a tensão entre os âmbitos público e privado de uma só vida – instaura-se o questionamento sobre como, no ambiente essencialmente patriarcal de um Brasil militarizado, foram criadas as condições para a eliminação sistemática das contribuições da arquiteta à cidade e à vida pública carioca.

Laercio Redondo realiza um plano-sequência do trajeto entre o MAM-RJ, no Parque do Flamengo, até a Casa da Samambaia, na serra fluminense, como estratégia de reflexão sobre a importância histórica da urbanista Lota de Macedo Soares, na instalação Desvios (2015) (Foto: Sergio Araujo)
Laercio Redondo realiza um plano-sequência do trajeto entre o MAM-RJ, no Parque do Flamengo, até a Casa da Samambaia, na serra fluminense, como estratégia de reflexão sobre a importância histórica da urbanista Lota de Macedo Soares, na instalação Desvios (2015) (Foto: Sergio Araujo)

A poética de Laercio Redondo abriga várias mulheres marcantes que passaram por longos períodos de apagamento. O seu resgate em obras como Carmen Miranda – Uma Ópera da Imagem (2010) e A Casa de Vidro (1999-2008) articulam um discurso político denunciador de práticas de discriminação operantes tanto na sociedade quanto dentro da própria disciplina da história da arte.

Ainda que reconheça no fato de Lota ter sido mulher e homossexual, duas fortes razões para o seu desaparecimento, o discurso do artista não se filia a um pensamento feminista estruturado apenas sobre questões de sexo e de gênero e mostra-se mais interessado na defesa das singularidades humanas. Em direção parecida, o olhar de Virginia de Medeiros está voltado para a desconstrução da noção tradicional de gênero, em seu sentido binário “homem” e “mulher”, assim como a pintura de Thiago Martins de Mello está para a liberdade arquetípica e a dissolução do sujeito oprimido – seja ele, índio, negro, imigrante, homossexual, travesti ou mulher. Aquele que não se enquadra no discurso oficial. Desde as paisagens de Redondo, Medeiros e Martins de Mello, se avistam feminismos em campos expandidos, ligados a causas políticas que atravessam gêneros, disciplinas e campos do pensamento.

O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mellon (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)
O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)

África utópicas
Lina Bo Bardi também se insere no corpo de trabalhos de Laercio Redondo sobre apagamentos da memória coletiva. Na videoinstalação A Casa de Vidro, realizada em parceria com Laura Erber, ele chama a atenção para a convivência orgânica de duas coleções antagônicas no espaço da casa habitada por Lina Bo e Pietro Maria Bardi.

O filme realizado em 1999 mostra uma casa de vidro em que pensamento mítico e cultura ocidental se entrosam de forma não hierárquica. No interesse da arquiteta italiana pela cultura popular, a arquitetura vernacular brasileira e as relações entre Brasil e África na cultura baiana, Lina desvia do racionalismo moderno no qual foi formada. Dez anos depois, o artista voltou ao local, quando a casa entrou em reforma para abrigar o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, e documentou o processo de institucionalização do espaço íntimo.

Carmen Miranda, a precursora do Tropicalismo, também é lembrada entre as mulheres que peitaram discursos dominantes. Nos elementos do grande móbile que compõe a instalação sonora – espelhos, plumas, contas –, Redondo desmembra o mito que se serviu à política internacional de Getúlio Vargas, e devolve a Carmen o protagonismo da história. O texto, sussurrado na instalação, ajuda-o nessa reconstrução, afirmando as influências afro-brasileiras na personagem exótica. “Mas, como acontece muitas vezes com a absorção do ‘exótico’ e do étnico pela cultura norte-americana, a personalidade de Carmen e seu radiante otimismo foram logo esmagados e distorcidos por Hollywood”, diz ele. Carmen foi a cantora branca que levou o samba para a zona sul carioca e para Hollywood. Lina foi a europeia que chamou a atenção da intelligentsia brasileira para a riqueza mítica de seu povo. Ambas trouxeram à luz a África que o Brasil tinha esquecido.

Baiacu, da série Studio Butterfly (2015), de Virginia de Medeiros (Foto: Virginia de Medeiros / Cortesia Galeria Nara Roesler)
Baiacu, da série Studio Butterfly (2015), de Virginia de Medeiros (Foto: Virginia de Medeiros / Cortesia Galeria Nara Roesler)

Do corpo mítico à cena do crime 
Nas séries de Silhuetas (1973-1980), iniciadas no México e continuadas em Iowa, nos EUA, a artista cubana Ana Mendieta (1948-1985) relaciona o contorno de seu corpo – com os braços levantados como ramos de árvores – às formas de desenhos rupestres e de deusas primitivas, evocando temas como feminilidade, fertilidade, morte e renascimento. Suas intervenções na natureza e esculturas com elementos naturais – como terra e fogo – rejeitaram recorrentes comparações com Robert Smithson ou Michael Heizer e transcenderam as categorias da Land Art, promovendo muito mais a transformação de identidades do que da paisagem.

Seu ativismo concretizou-se em obras que tomaram a forma de denúncia da violência contra a mulher – Mendieta integrou o coletivo feminista A.I.R Gallery até 1982 – e sua obstinação pela violência levou-a a usar sangue como matéria do processo artístico. Em Untitled, Rape Scene (1973) recria em seu apartamento, em Iowa, a cena de um caso real de estupro seguido de assassinato, noticiado pela imprensa. Em Sweating Blood (1973), é filmada enquanto sangue escorre por seu rosto. Não há sofrimento nem violência. Apenas visceralidade.

Still do filme Super-8 Sweating Blood (1973), de Ana Mendieta (Foto: Cortesia Galerie Lelong, Nova York, The Estate of Ana Mendieta Collection)
Still do filme Super-8 Sweating Blood (1973), de Ana Mendieta (Foto: Cortesia Galerie Lelong, Nova York, The Estate of Ana Mendieta Collection)

Essa linha tênue entre o corpo mítico e a cena do crime aplica-se à pintura do artista maranhense Thiago Martins de Mello. Nas grossas camadas de tinta de suas telas em grandes dimensões aplicam-se densas visadas acerca dos paradoxos do Brasil e das ambivalências da condição humana.

Martírio, pintura apresentada na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014, é um retrato da violência praticada contra a Amazônia, “uma paisagem da periferia do capital internacional”. Como um grande teatro sincrético, a obra apresenta Chico Mendes e outros mártires e ativistas amazônicos, como os caboclos do Vodum, religião africana com grande representatividade em São Luís, cidade natal do artista.

Na pintura O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), a violência contra o índio é a violência contra o corpo feminino, que é a violência contra o negro, que é a violência contra a diversidade, que é a violência contra a liberdade de afetos. As camadas críticas de tinta se sobrepõem aqui em contextos arquetípicos complexos e triangulações que aproximam mitos do poder feminino, como Lilith, Virgem Maria, Maria Padilha e a escrava Anastácia.

Desvio do gênero na curva do real 
Em texto escrito para o recém-lançado livro Studio Butterfly (Circuito, 2015), Lisette Lagnado observa que “o mergulho na cena homossexual é capítulo praticamente ignorado da crítica brasileira por falta de diálogo entre teoria da arte e teorias feministas e queer, demonizadas pela academia sob a escusa de um essencialismo nacional: o repúdio à importação de uma vertente norte-americana”.

De fato, os desvios de gênero propostos por Virginia de Medeiros em Studio Butterfly (2003-2006) coincidem com o ponto central da crítica da filósofa norte-americana Judith Butler ao feminismo que trabalha com noções binárias de gênero – com a ideia de que as polaridades masculino e feminino são a verdade da sexualidade. Não sem condenar a “busca melancólica de constituir famílias, povos, nações” entre artistas de diferentes contextos e gerações, em seu texto sobre as mise-en-scenes fílmicas de Studio Butterfly, Lagnado lembra-se de Rrose Sèlavy, pseudônimo e persona híbrida de Marcel Duchamp, captada pela lente de Man Ray em 1921.

No mergulho de Virginia de Medeiros no universo dos travestis de Salvador (BA), onde montou um estúdio de fotografia que se tornou ponto de encontros e cruzamento de histórias pessoais e coletivas, a artista faz uma imersão nas próprias fantasias e paixões. Em fotos e textos testemunhais, que denomina “Contos” – hoje reunidos na publicação –, a artista se amalgama a seus objetos de estudo e de desejo. Mais que questionar a identidade de gênero, ela a reinventa. É na liberdade de sua ação e seu discurso que ela amplia as possibilidades de existência corporal e performativa.