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Still de o q vc v é o q vc v (2019) de Victor Maia
Postado em 02/10/2020 - 10:29
o q vc v é o q vc v, de Victor Maia
Sem consideração ao interesse público da coleção, leilão de obras do Banco Santos configura um epílogo ao filme de Victor Maia

No projeto O q vc v é o q vc v, estamos diante de um duplo processo investigativo. Primeira camada investigativa: o estudante Victor Maia decide fazer, como tema de seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), na ECA-USP, a exposição pública da pintura The Foundling #6, de Frank Stella, relevando a sua história, até aqui, praticamente desconhecida. Segunda camada investigativa: simular uma equipe de reportagem que vai atrás do estudante (incorporado na personagem Super Meia) e da história de seu processo investigativo, a fim de colocar a história da pintura em circulação para além dos limites da Academia, supostamente em meio televisivo ou internet. 

Convidada a integrar a banca de TCC de Victor Maia, reconheço minha persona editora de revista especializada de arte automaticamente vinculada a essa cadeia investigativa. Ao aceitar participar da banca, me integro ao script, agregando uma terceira camada investigativa. Minha contribuição a esse jogo de espelhos seria um comentário em forma de resenha crítica, cujos principais pontos enumero a seguir. 

Na introdução do roteiro comentado de O q vc v é o q vc v, Victor Maia diz ter escolhido trabalhar com a forma jornalística, a fim de entrelaçar ficção e realidade. 

A dicotomia objetivo/subjetivo, que esta vídeo instalação sitio específico  pretende implodir, é um embate travado nas fronteiras entre a literatura e o jornalismo, o cinema e o documentário, o monumento e o documento, que acaba por constituir o gênero documental em si mesmo. Resultam desses embates as mais diversas formas híbridas do jornalismo literário, do docudrama, da arte mídia, ou do mockumentary.

Com o prefixo inglês mock – zombar, falsear, fingir –, mockumentary pode ser definido, em linhas gerais, como filme ou programa de tevê que apresenta uma narrativa ficcional na forma de reportagem investigativa. Esse gênero que consagrou Orson Welles com a adaptação para o rádio do romance A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells, é a forma que Maia parece escolher trabalhar.

Embora existam questionamentos acerca de o intuito de Orson Welles ter sido deliberadamente o de falsear, o fato é que, ao interromper a programação musical da rádio CBS para noticiar uma invasão de marcianos, em pleno Halloween de 1938, sua dramatização deixou 6 milhões de pessoas e três cidades norte-americanas paralisadas pelo pânico.  

Welles voltaria ao gênero em F for Fake (1973), traduzido no Brasil para Verdades e Mentiras, sobre um falsificador de quadros e seu biógrafo. 

A pergunta que a crítica fez sobre F for Fake cabe também a O q vc v é o q vc v: “É um filme de ficção, um documentário, ou um ensaio?” Indagação que parafraseia a clássica: É um pássaro, é um avião, é o superman? 

Não, é o Super Meia. 

Se F for Fake confrontava o falsário e seu biógrafo; e A Guerra dos Mundos alternava as vozes do locutor e do professor da Universidade de Princeton que liderava a invasão marciana, interpretado por Welles, o filme de Maia é construído da forma de um diálogo entre o anti-herói Super Meia e o repórter investigativo. 

A carga de pólvora do mockumentary se aplica à vídeo instalação sítio específico de Victor Maia, quando esta busca derrubar – com argumentos – a parede que esconderia a tela de Frank Stella confiscada da coleção de Edemar Cid Ferreira. Este último, abordado na ficção documental como Cidinho. 

Instalação de o q é q vc v (2019), de Victor Maia, no Espaço das Artes, na USP (Foto: Cortesia do artista)

Outra evidência incontornável da adesão do filme ao gênero em questão é forçar o leitor/espectador a recorrer ao Google a cada 3 minutos, para a checagem de uma informação (importante destacar que se trata de uma estratégia sugerida pelo próprio artista, como modus operandi participativo do leitor/espectador). E, ainda assim, deixa-lo na dúvida. 

Se é “real” ou não, por exemplo, a tentativa de contato com Frank Stella, por email, no processo investigativo do Super Meia, não importa. 

O que importa é que faria todo sentido que, em uma reportagem investigativa, o autor do objeto de pesquisa fosse consultado. Importa também que a resposta recebida do ateliê do artista é totalmente plausível: um artista midiático está sempre “very busy” e totalmente indisponível.  

Entre as informações com “atestado de veracidade” há, por exemplo, a divida de Cid Ferreira com credores do Banco Santos. Segundo a investigação do Super Meia, foram R$ 3,2 bilhões em dividas com 3 mil credores. Segundo reportagem de Silas Martí para a Folha de S. Paulo (03/09/2013), foram R$ 2,2 bilhões.

Na referida reportagem, a única menção feita a Frank Stella, é que “dois laudos obtidos pela Folha atestam que obras, entre as quais uma escultura de Frank Stella, instaladas perto de uma piscina, estavam perdendo suas cores”. É bastante surpreendente, após longos minutos de pesquisa no Google, resignar-se a concluir que o único texto que aparece a partir das palavras-chaves 

frank stella + Foundling (n#6) + Estado de S. Paulo +Folha de S. Paulo + MAC USP

é um texto da titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, docente de Estética e História da Arte, Elza Maria Ajzenberg, de 2007, escrito, portanto, quando a pintura ainda estava em exposição na sede do MAC USP na Cidade Universitária. 

O texto aponta que Stella fez uma exposição com Nuno Ramos no Brasil, em 2004, para a qual realizou o painel The Founding n#6. Afirma a crítica tratar-se essa obra de um disparador de visões múltiplas de “texturas elaboradas, colagens, mix de tintas, ‘splash’ com efeitos metálicos e fluorescentes”. Uma “nave cromática” que permite ao visitante uma “viagem libertadora”. Exatamente o revés do que é redigido pelo artista travestido de anti-herói, que desenvolve, em 20 minutos de filme, um ensaio sobre a invisibilidade, a inacessibilidade e o enclausuramento da obra.

Seria este filme o primeiro texto produzido sobre a obra de Stella em 15 anos? Se isto se confirma, coloco aqui uma questão: não haveria, à revelia da intenção do artista, um resultado genuinamente jornalístico, produzido por uma peça que se coloca inicialmente como uma paródia do jornalismo? Não seria isto uma “traição” do filme ao próprio roteiro? 

Alegorias
O filme, que também se remete ao cinema de desvio, adotando procedimentos situacionistas como a apropriação de clichês e tentando inverte-los (por exemplo, trazendo para o documentário o herói de história em quadrinhos), se revela uma alegoria dos processos de opacidade e de censura das instituições culturais e da política brasileira. 

O discurso alegórico toma corpo quando inserções de imagens de arquivo de carros cenográficos em escombros dão lugar a fotos do célebre Cristo Mendigo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis – censurado no Carnaval de 1989 –, desfilando sob manto feito de sacos de lixo e a faixa com o texto: “Mesmo proibido, olhai por nós”. 

Qualquer semelhança com a frase epígrafe do filme – “Conserva, senhor meu senso de humor!” – não é mera coincidência. 

A critica institucional que Victor Maia se propõe a construir é contundente em mostrar como a proibição no Carnaval se relaciona com a inacessibilidade da pintura de Frank Stella. O esconderijo da pintura – ou sua visão enquadrada em travellings claustrofóbicos atrás da parede – seria a alegoria de uma sociedade impossibilitada de aceder e praticar a crítica.

Mas também a alegoria de um mercado de arte exclusivista que inviabiliza a condição pública da arte. Na imagem da parede branca de 64 metros quadrados, sobre a qual se apoia o documentário do Super Meia, e na ausência da pintura do site do MAC USP, a constatação de que estamos diante de uma pintura fantasma.

O modo como The Foundling #6 foi leiloada, no final de setembro último, a uma galeria internacional de identidade não revelada, junto às obras coleção da massa falida do Banco Santos, em procedimentos que não levaram em consideração o interesse público da coleção, confirma a tese do filme. Leia mais em https://www.select.art.br/justica-economicista/