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Cena do espetáculo Ubu Rei [Foto: João TK/Divulgação]
Postado em 31/01/2023 - 5:01
Ubu Rei, um tratado sobre nossos tempos
Em resposta ao levante do fascismo, grupo de teatro Os Geraldos conta a história recente do Brasil a partir da peça de Alfred Jarry

Ubu Rei foi escrita por Alfred Jarry no final do século 19 e, nos 120 anos em que vem sendo encenada em todo o mundo, não perde a atualidade. É considerado um texto visionário não apenas do surrealismo, do Dada e do Teatro do Absurdo, mas da era de totalitarismos, extremismos, ditaduras e atentados antidemocráticos, nos séculos 20 e 21. A peça conta a história de Pai Ubu e Mãe Ubu, que usurpam o trono do rei da Polônia e instauram um governo de caos absoluto, normatizando a estupidez e a barbárie. A identificação entre a sátira de Jarry e a calamidade política, cultural e humanitária deixada pelo desgoverno Bozonaro confere à montagem de Ubu Rei pelo grupo Os Geraldos, com direção de Gabriel Villela, a qualidade de um tratado sobre nossos tempos.

Em um mundo que regride ao fascismo, a peça tem um caráter de observatório da realidade, ou crônica, ainda que por meio da sátira. Complexifica a tarefa o fato de a crônica contemporânea, diferentemente do século 20, ter de se pautar hoje não só por experiências vividas ou fatos noticiados, mas por verdades produzidas em redes sociais, pela indistinção entre fato e ficção e pelo empoderamento da extrema-direita pelos algoritmos. Se o Rei e a Rainha Ubu encarnaram casos de deturpação e abuso de poder ao longo da história, agora eles representam o dirigente que incita ao ódio, dissemina a violência digital, desmantela políticas públicas, sufoca direitos humanos e pacientes de Covid-19. “As desventuras de Pai Ubu concorrem com barbaridades ubuescas atuais que nem Jarry ousou imaginar”, aponta a atriz Paula Guerreiro (Mãe Ubu), em texto do programa da peça.

Mas a montagem responde bem à toxicidade da vida contemporânea. Para “responder com violência poética à selvageria destes tempos”, Villela cria com Os Geraldos uma narrativa antropofágica, colocando, no mesmo caldeirão de referências a memes e piadas políticas digitais, um sem fim de citações às linguagens do cartoon, do teatro de marionetes, do teatro de sombras, do teatro de revista, do tropicalismo, do Teatro Oficina, do cancioneiro popular, da música de protesto, do humor popular televisivo brasileiro, de Shakespeare, Rabelais…

Ainda que o texto seja uma tradução de Barbara Duvivier e Gregório Duvivier (Ubu Editora, 2021), cabe ao elenco – um coro afinado de 14 atores – a atenção permanente ao contexto político nacional, para a produção de novos comentários. “A peça está prevista para circular durante muito tempo e vai ficar a critério do ouvido do elenco o que acontecer durante a temporada. A gente vai, naturalmente, selecionando prosas, conversas e textos de jornais, dialogando com as cenas, retirando da realidade os temas a serem acoplados à fábula do Alfred Jarry”, diz Gabriel Villela à seLecT_ceLesTe. A música é o 15º ator da peça, uma voz coletiva que vem a representar as múltiplas e contraditórias identidades do brasileiro.

Ubu Rei tem um histórico de sucesso arrebatador no Brasil. Ubu – Pholyas Physicas, Pataphysicas e Musicaes, montagem do Teatro do Ornitorrinco, de Cacá Rosset, Maria Alice Vergueiro e Luiz Galizia, ficou duas décadas em cartaz – de 1985 a 1997 –, consagrando a fórmula de uma dramaturgia popular + erudita + política. Nos anos de redemocratização, a peça arejou e ampliou o espectro de espectadores do teatro e abriu a porta para o humor sofisticado que surgiria depois na TV e na internet, como o Porta dos Fundos.

Vale lembrar que Maria Alice Vergueiro foi professora de Cacá Rosset na ECA-USP e foi expulsa da instituição após uma montagem estudantil, em 1974, em que ela, interpretando uma rainha louca, era enrabada por ele, no papel de um toureiro cafetão. Conta uma reportagem publicada na Folha Ilustrada, em 2018, que o único professor a defendê-la foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016), que teria dito: “Historicamente, professores sempre enrabaram os alunos. O que é que tem uma vez um aluno enrabar o professor?”.

A voz libertária de Magaldi, ainda em tempos de ditadura militar, ganha ressonância no riso atemporal de Alfred Jarry, que inventou a “patafísica” – a ciência das soluções imaginárias – para libertar o pensamento das visões maniqueístas, polarizadas, moralistas, sexistas, racistas e misóginas. Jarry é a evocação perfeita neste momento em que a mediocridade foi derrotada nas urnas. Contar a história recente do Brasil a partir de Ubu Rei e converter o monstro em palhaço é uma catarse, uma resposta ao levante do fascismo.

Ubu Rei
Até 12/3, Teatro Anchieta – Sesc Consolação, Rua Dr. Vila Nova 245, São Paulo, sescsp.org.br/consolacao

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teatro   Ubu Rei   Grupo Os Geraldos