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O artista Neo Muyanga durante a abertura da 34ª Bienal de São Paulo (Fotos: Levi Fanan / Fundação Bienal)
Postado em 02/03/2020 - 9:09
Uma vela de navio para os ventos da história
Artista Neo Muyanga conta como descobriu passado escravocrata de personagem que inspirou a performance A Maze In Grace
Luana Fortes

No início de fevereiro, as escadarias do pavilhão da Bienal de São Paulo foram tomadas pela performance A Maze In Grace, elaborada pelo músico e artista sul-africano Neo Muyanga, com a colaboração do coletivo Legítima Defesa e da artista Bianca Turner. A ação inaugurou o programa expositivo da 34ª edição da Bienal, assim como a abertura da exposição individual de Ximena Garrido-Lecca. 

Em torno de um cenário que simulava a vela de um navio, estendida pelos três andares do edifício, Muyanga conduziu um percurso acompanhado de performers vestidos de preto, cantando uma parte da letra da conhecida música Amazing Grace. O trabalho partiu da descoberta do artista acerca da história do compositor inglês John Newton (1725-1807), que se beneficiou do tráfico de escravizados e depois se converteu à religião anglicana, aderindo à causa abolicionista.

Em entrevista à seLecT, o artista conta sobre sua pesquisa em música, a importância das canções de protesto na África do Sul e as contradições da vida de John Newton como alegoria para se pensar as omissões que deliberadamente foram feitas na construção da história.  Todos esses assuntos ainda voltam ao contexto da Bienal de São Paulo em setembro, quando Muyanga apresenta uma instalação que deriva da performance A Maze In Grace, que será realizada também na Bienal de Liverpool deste ano.

Registro da performance A Maze In Grace, que inaugurou programa expositivo da 34ª Bienal de São Paulo

Você poderia contar um pouco sobre sua bagagem musical e sobre a tradição italiana dos madrigais, que você estudou quando morou na Itália?
Eu diria que minha educação começou informalmente em uma township, que é o equivalente às favelas daqui, porque eu era membro de diversos corais. Por essa prática, absorvi muito das canções de protesto das ruas. Na última era do Apartheid, havia muitos protestos nas ruas e nós crescemos com isso. Esse contexto informa o meu som, mentalidade e DNA. Depois da escola, fui estudar na Itália, mas pretendia estudar outra coisa, não pretendia estudar música.

Você pretendia estudar física, certo?
Exato. Estudei física por um ano e meio, mas o que encontrei nesse tempo foi um coral. Eu estava muito longe de casa, era o único da minha família que estava na Europa na época e sentia que precisava de uma ligação com o meu lar. O coral parecia um espaço lógico e, enquanto estava no coral, o maestro disse: “Você deveria tentar cantar um madrigal”. Madrigais são canções do renascimento muito complexas, em que cada voz tem uma estrutura melódica muito distinta e juntas elas criam uma polifonia. Eram canções populares daquele momento, profanas, para a vida mundana, mas também existiam madrigais sagrados. Pessoas como [Claudio] Monteverdi e [Giovanni Pierluigi da] Palestrina escreveram madrigais. O período mais poderoso desse tipo de música foi entre o Renascimento e o Barroco. Depois, a música se transformou em uma formalidade diferente. É isso que, em parte, constitui minha produção. É muito poderoso, mas também muito sutil.

Como você comentou, as canções de protesto eram usadas em manifestações. Qual foi a importância da música para o fim do Apartheid?
Na África do Sul existe música para tudo, por isso, esse fato por si só não é fora do comum. Mas a nossa revolução, se você quiser chamar de revolução, foi sobretudo feita pela música. Eu também não denominaria a nossa tradição de canções de protesto de música, porque elas são objetos para se fazer uma revolução. Não são canções que você canta em uma festa, no chuveiro ou limpando sua casa. Elas não são feitas para entreter, tampouco tocam no rádio, mas são objetos para lutar, para o terreno da guerra. São essas canções que são verdadeiramente o arquivo sônico da minha juventude.

Acredito que existe um paralelo interessante no Brasil, com as canções que serviram para contestar a Ditadura Militar. Você conhece essas músicas?
Sim, eu sei um pouco sobre a tradição da música revolucionária aqui. A diferença entre as canções de protesto brasileiras e sul-africanas é que, no Brasil, cantores famosos cantavam suas músicas para um público que as escutava e depois as repetia. Já para nós, as músicas são objetos públicos que somente podem ser cantadas em um grupo e, além disso, elas não podem ser gravadas ou usadas em um palco. 

Você entende a música Amazing Grace, que você usa como ponto de partida para o trabalho A Maze In Grace, como uma canção de protesto?
A música Amazing Grace foi usada em protestos da Diáspora Negra e, quando as pessoas a cantavam, era para manifestar solidariedade com a causa negra globalmente. O que as pessoas não sabem, no entanto, é que ela foi escrita por uma pessoa que se beneficiou da escravidão, que foi capitão de um navio negreiro. E mesmo que John Newton tenha lutado mais tarde contra a escravidão e se tornado um abolicionista, entre um momento e outro muito tempo se passou. O reconhecimento de que sua posição era cruel durou bastante e somente na última década de sua vida é que sua voz se tornou uma voz poderosa contra o tráfico. Então, sim, as pessoas cantam Amazing Grace como uma canção de protesto, mas ele não a compôs como uma canção de protesto, necessariamente, do ponto de vista político. Ele escreveu como uma música de lamento, arrependimento e vergonha. 

Talvez também tenha sido para dar uma mensagem já no fim da escravidão, porque, claro, ele era um britânico que se tornou uma importante voz abolicionista dentro de um governo que estava unilateralmente tentando abolir a escravidão naquela época. Isso é uma coisa boa, mas, se olharmos para o contexto histórico, percebemos que poderiam existir outros motivos, como o ganho comercial. Alguém poderia ler John Newton por meio dessa trajetória. Isso é a minha especulação.

Já que muitas pessoas não conhecem essa história do compositor John Newton, como você a conheceu?
Há 15 anos, eu estava visitando Liverpool por conta de um outro projeto. Estava fazendo uma caminhada e vi um pequeno chalé com a seguinte placa: “Aqui viveu John Newton, compositor da música Amazing Grace”. Eu não sabia que a música havia sido escrita por um homem branco de Liverpool e então comecei a ler a respeito. A primeira coisa que descobri foi a conversão de Newton, sua história como abolicionista, a trajetória ancorada nos padrões morais elevados do bem e sua vida a serviço de Deus. Mas quanto mais eu lia, mais eu percebia que ele esteve envolvido em uma outra história, conflitante com aquilo que estava escrito nesses textos. 

Ao longo de dez anos, eu voltei a ler sobre o assunto com frequência e, quando pensei em propor um projeto para o público, eu queria encontrar uma maneira mais substancial de pensar a presença de John Newton, da música e o que ela significa hoje. Encontrei um livro que foi publicado por ele no século 18, que é uma compilação de cartas escritas a um clérigo que era seu colega. No livro, ele conta como percebeu os erros que tinha cometido e que, ao encontrar Deus, ele queria ser um guerreiro a favor da paz, da humildade e da humanidade. O que me intrigou foi a discrepância das datas em que ele escreveu as cartas e do início da sua atuação para, de fato, promover alguma mudança. Quando ele estava voltando do Brasil para o Reino Unido (uma viagem com o objetivo de traficar escravos), ele quase morreu no mar por conta de uma tempestade enorme. Foi quando, pensando que o navio afundaria, ele prometeu a Deus que, se ele se salvasse, se tornaria uma boa pessoa. Mas, apesar de ter sido salvo, Newton não se torna uma pessoa boa imediatamente. Foram essas questões que começaram a me ocorrer. Percebi então que essa era uma história que eu queria contar em forma de música. Não queria dar uma palestra sobre John Newton, mas queria pensar sobre o que fazemos quando nos comprometemos a cantar essa música inocentemente. Não acho que a gente possa cantar essa música inocentemente, mas também acho que a gente não pode parar de cantá-la. Ela é poderosa porque foi imbuída de mitologias, histórias e um legado que se manifesta como relevante para o movimento social no mundo. Não é mais uma história americana ou africana, é algo que motiva a mudança social, a solidariedade e a coletividade. 

Eu quero apresentar essa história dessa maneira, aqui, porque estamos em um momento em que precisamos encontrar solidariedade novamente, não só na África do Sul ou no Brasil. No entanto, acho que também precisamos olhar para o que a história nos diz, quais fatos foram submergidos e simplificados para o benefício de só um lado. Estamos em um momento em que as pessoas têm mais informações  do que nunca, mas sabem menos do que nunca. Você tem fatos, mas tem conhecimento? Acho que a pesquisa histórica nos oferece uma forma de descobrir mais, que é o propósito deste trabalho. Saber, não sobre a música apenas, mas sobre a nossa cumplicidade com a história. Além de ser um aviso de que, se decidirmos invisibilizar ou ignorar alguma parte da história, nós estamos nos arremessando ao perigo.

O trabalho A Maze In Grace conta com a participação do coletivo Legítima Defesa e da artista Bianca Turner. Como você os conheceu? Você costuma colaborar com músicos ou artistas das próprias cidades onde você vai fazer apresentações?
Eu trabalho de formas diversas. Com frequência, colaboro com músicos locais, mas também costumo trazer pessoas da África do Sul ou me apresentar como artista solo. Eu conheci o coletivo Legítima Defesa porque estive aqui para fazer uma performance solo durante a MIT-SP. Enquanto estava me apresentando, eles estavam sentados na plateia e eu não sabia que a performance deles era perturbar a minha. Era o fim da minha apresentação e eu comecei a ouvir vozes de disrupção. Pensei que eles sabiam sobre a minha tradição de fazer música utilizando chamado e resposta. Assumi que eles estavam brincando de chamado e resposta comigo e então comecei a respondê-los. Acho que eles se surpreenderam por eu não ter parado de tocar, porque a intenção deles era interromper. Depois, quando conversamos, eles me contaram quem eram, o que faziam, que trabalham acerca de raça e negritude no Brasil. Descobri a partir daí que a abordagem deles sobre raça é semelhante à minha, então quis fazer algo junto com eles. 

Fui convidado pelo Eugênio Lima [do coletivo] para colaborar com a peça E Se Brecht Fosse Negro? e nós começamos a ler muitos textos juntos. Nós percebemos que o arquivo histórico separou muito o colonialismo lusófono e o anglófono. As coisas que lemos sobre a história negra são muito diferentes dependendo de quem foi o colonizador. Como resultado, existem várias separações. Um exemplo disso é que a música Amazing Grace não é tão conhecida aqui como é no mundo anglófono, particularmente por conta do idioma. Parte da minha proposta é cruzar essa barreira, porque, na verdade, essa história centrada em Amazing Grace é muito relevante para o Brasil e tem sido por décadas. Nesse mesmo projeto, a Bianca Turner também estava colaborando. Conheci o trabalho dela e seu particular talento em mapear imagens quando fui convidado a me apresentar na Bienal. Foi nesse momento que decidi convidar os dois como colaboradores. 

Você já havia trabalhado com mapping antes?
Eu já vi muito, mas nunca gostei de olhar para trabalhos em mapping. Já trabalhei com animações para minhas próprias óperas, que conduzi ou dirigi, mas projetava imagens de formas simples. Acho bem particular a habilidade que a Bianca tem, o tipo de mapping que ela faz é muito especial porque ela tem equipamentos que conseguem relacionar as imagens à arquitetura do prédio, não só a uma simples tela. E eu queria habitar a arquitetura do espaço do Pavilhão da Bienal, queria reviver o fantasma do navio de Newton, que levou escravizados do oeste da África ao Brasil. 

Nós tentamos recriar uma vela para os ventos da história, mas também criar um disfarce, um véu, através do qual não podemos ver tudo. O que vemos por trás dele são fantasmas, sombras e seres mitológicos. Eu queria ter esse compartilhamento místico das partes da música que foram escondidas, as camadas submersas sob todas as formas de água, emocional e física. 

É o primeiro trabalho que você fez após a intensa pesquisa a respeito de Amazing Grace?
Sim. Ele também será feito em colaboração com a Bienal de Liverpool, em julho, onde me apresentarei com um coro a partir da tradição que eles estão acostumados, com partituras formais. Mas, no caso, serão partituras disruptivas e essas disrupções serão inspiradas no trabalho que fiz no Brasil com o coletivo Legítima Defesa. Então, levarei para lá uma parte do que foi feito em São Paulo, a cidade de Paulo, que é um personagem significativo. Newton se identificava com São Paulo quando falava de sua conversão. Paulo era previamente Saulo, que perseguia os cristãos e que se transformou em São Paulo ao ter uma epifania. Existe essa conexão bíblica.

Depois da sua participação em Liverpool, você apresentará na exposição coletiva da 34ª Bienal de São Paulo uma instalação. Como será essa instalação? Será um registro das performances?
Eu estou fazendo uma instalação audiovisual com elementos dessas performances. Voltarei em setembro para montá-la. Será, em parte, baseada em como nós fizemos o ambiente para a performance em São Paulo, mas também influenciada pelo que acontecerá em Liverpool. Será uma união de conhecimentos.